Vestiu o uniforme de sempre. Nem olhou para si no espelho, partido no canto inferior direito, esconjecutrado , que havia no seu quarto, desde... Bem, sempre! Sempre que se lembrava da sua vida, todas as suas memórias, vivências haviam se passado ali, na Instituição, tudo o que era anterior a isso, não importava, era como se não existisse. Mas esse pensamento não perpetuou muito na sua mente, não lhe importava o espelho, mais que velho, que estava no seu quarto, nem o facto de não gostar de se ver no espelho, tão pouco se o seu traje estava desalinhado. Encontrava-se extremamente curiosa acerca do que lhe iria acontecer, não sentia medo, isso não, sentia uma fascinação, como se o facto de lhe ter sido entregue um castigo que ela na sabia como iria decorrer e quem a iria supervisionar fosse algo de bom, excitante. Não era exactamente isso, era apenas a novidade, o perfume ténue e disfarçado que o desconhecido oferecia aos seus sentidos, que ela captava mas não conseguia desdobrar e perceber os seus contornos, não conseguia materializar.
Já na parte exterior da Instituição, no coberto, como lhe chamavam, Fantasia sentou-se num banco de pedra rude que ali se encontrava, languidamente, a observar o céu tingido de cores que não existiam, sentiu vontade de pintar aquela paisagem, mas sabia que não podia, por enquanto... O Verão já findava, e o Outono já se fazia sentir. Os frutos maduros do Verão, que anteriormente se encontravam cheios de sumo doce, e que ostentavam alegremente cores vivas, agora começavam a perder a pujança de outrora, ficavam nostálgicos, como Fantasia pensava, e, por um qualquer desgosto, deixavam-se cair com as folhas, também amarelecidas.
O vento já não se mostrava meigo como no Verão, insurgia-se contra alguém, fazia levantar as folhas, e fazia-as rodar num rodopio de cores. Contudo, era no mar que Fantasia mais poder ver diferenças, apesar de não o poder ver, conseguia-lhe adivinhar as ondulações, a espuma branca, a cor indefinida, todo o mistério que o envolvia.
Envolta nestes pensamentos, e tentando adivinhar qual o tempo que faria naquele dia, não deu pela presença de Filipa, uma das suas colegas mais velhas. Alta e esguia, com olhar melancólico, escuro, morena por natureza, Filipa era uma das pessoas mais calmas da Instituição, de tanto que, por vezes era completamente apática a tudo, não parecia desperta. Era, provavelmente das pessoas com quem Fantasia se dava melhor ali. Surpreendida, Fantasia pôs-se de pé num salto, e esperou pelas indicações da sua suposta supervisora. Era normal eles fazerem várias tarefas, dividirem o que há para fazer, se bem que Fantasia nunca participava, todos tentavam ter o mínimo de contacto com ela. Achavam-na diferente, esquisita.
Apesar de tudo, a rapariga não deixou de ficar surpresa, esperava alguém detestável , que a fizesse passar um dia árduo, com muito trabalho, que mal a deixasse respirar, não fazia sentido. E se fizesse, era algo que ela não compreendia!
Filipa, com a sua voz monocórdica e sonolenta, disse com uma pronúncia muito própria dela que elas deveriam ir ao mercado, que lhes tinha sido dado uma lista, a qual tinham de seguir rigorosamente, sublinhou Filipa.
Mais uma vez, Fantasia abriu e fechou a boca de espanto, os olhos arregalados. Mais surpresa era difícil. Tentou então estabelecer contacto com Filipa, era raríssimo ela falar, e quando o fazia era com bastante dificuldade, e só com esforço, as pessoas compreendiam completamente o que ela queria dizer.
Vamo pó mecad da via?" disse atabalhoadamente.
Filipa assentiu.
Deu um salto de satisfação. Havia anos que não ia ao mercado! E gostava tanto, trazia lhe tantas recordações....