Encaminharam-se então as duas pelo carreiro de pedra batida que ligava a Instituição ao caminho principal. Antecipando a visita ao mercado, Fantasia parecia nem reparar nos pequenos pormenores por que reparava habitualmente quando ali passava. As várias teias de aranha que pendiam dos vários arbustos que ladeavam o caminho, brilhavam sob aquele sol com resquícios estivais, inúmeras ervas daninhas brotavam entre as várias flores silvestres, que por ali desabrochavam. Um momento de fragrâncias, cores que Fantasia sempre presenciava e apreciava quando ali passava, não se deu, não desta vez.
O mercado ficava para lá do porto, quase no centro da vila. Filipa, que era bastante mais velha que Fantasia sabia o caminho, embora não o fizesse muitas vezes, mais certo que Fantasia era certo, sabia-o bastante bem, pois ao contrário do que a maior parte das pessoas pensava, ela tinha muito boa memória. Foi calcorreando as ruas apertadas, de calçada, sempre com Fantasia no seu encalço. Não haviam muitas pessoas na rua àquela hora da matina, a maior parte encontrava-se ainda em casa, e preparava-se para ir trabalhar ou ir para a escola. Havia ainda duas ou três tabernas, onde apenas se encontravam os seus clientes mais habituais e madrugadores. A vila, encontrava-se, assim, a acordar lentamente, sem pressas. Feliz por não ter pessoas que a conhecessem ali, que a pudessem olhar como se soubessem tudo o que ela havera feito, como se soubessem a sua origem, todos os seus defeitos. Sentia-se constantemente assim quando estava na Instituição, mas não ali, nem na praia, enfim, fora da Instituição.
Atravessaram ruas e ruelas até pararem em frente a um grande portão de grades pretas, e com um letreiro grande, e já desbotado pelo tempo caprichoso, a dizer "Mercado". Um sorriso leve surgiu nos lábios carnudos e rosados de Fantasia, nunca pensara em vir mais ao mercado, desde pequena. A lista elaborada por Arminda e com vários produtos inusuais , devido à presença de Alberto, foi retirada da pequena mala que Filipa levava na sua mão. Encaminhou-se então para dentro do portão preto, contudo , ainda antes avisou Fantasia:
"Não te afastes muito, eu faço as compras sozinhas, depois só preciso da tua ajuda para as levar, encontramo-nos aqui dentro de meia hora."Fantasia assentiu.
Primeiro, os seus olhos tiveram que se habituar à vivacidade de todo aquele local, o reboliço das pessoas, o apregoar dos vendedores, o ar impregnado de tantos sabores que até lhe custava respirar, os vários animais que por ali passavam à procura de alimento, de entre os quais cães e gatos, provavelmente vadios.
Fantasia arrepiou-se quando viu o primeiro gato, grande, cinzento e com uns olhos verdes redondos e brilhantes. Olharam-se mutuamente, o olhar orgulhoso e nunca submisso do gato afastou-se altivamente do olhar de Fantasia, e seguiu em frente. Fantasia segui-o atentamente com o olhar. Não gostava de gatos, era um facto. Mas não encontrava razões convincentes para isso. Irritavam-na, simplesmente. Adiante, encontrou as primeiras barracas montadas pelos comerciantes. Legumes viçosos regalavam os seus olhos, a mistura confusa de frutas, sementes, vegetais de todas as qualidades, remexidos pelas pessoas que já por ali haveriam passado. Parou por uns instantes tentando vislumbrar todas as pessoas que por ali haviam passado, as suas caras, a sua expressão ao examinar os produtos, os olhares atentos aos preços, todo o passado e história que havia ligado àquela simples pessoa que num certo momento da sua vida apenas queria comprar vegetais por um preço acessível. Em certos momentos era assim que as outras pessoas se resumiam. E ela? Era apenas uma outra pessoa que pensava nas outras, embora o contrário não acontecesse. Decidiu continuar. Mas imobilizou-se novamente, pois reparara que havia uma rapariga que, com um aspecto alheio a tudo, introduzia os seus compridos dedos no saco de feijões que lá haviam. Mergulhou completamente os dedos, e remexeu-os com um prazer singelo.
Sorriu perante aquela cena e prosseguiu. Havia mais adiante um forte cheiro a maresia, aquele cheiro inebriante que acorda qualquer um e que a levava a relembrar o seu passeio com José , o pescador, as vagas do mar, o balançar suave do barco... Foi seguindo a forte fragrância e encontrou uma banca de peixe. Horrorizou-se com os vários peixes mortos expostos em filas, alguns apresentando o ventre esventrado, outros ainda inteiros, mas todos com os olhos vidrados e exalando aquele cheiro característico. Perante aquela deprimente visão, Fantasia virou as costas e começou a afastar-se quando uma voz masculina, no entanto, muito doce a chamava.
"Eh, menina!"O sotaque era cerrado, e tão característico que Fantasia reconheceu, de imediato, aquela voz. José.
Este foi ao seu encontro. Havia alguns dias que não o via, e sentia a sua falta. Falta essa também sentida pelo simples pescador. Aproximando-se dela, disse-lhe:
"Nunca mais apareceste na praia, nem no porto. Fiquei à tua espera, para dar mais alguns passeios no meu barco. O mar também tem estado à tua espera. Tem sentido a tua falta. Vejo nas marés e na espuma suja que ele tem, que tem saudades tuas."Fantasia baixou o olhar, indicando que tal não lhe havia sido possível. Por seu lado, José que compreendeu imediatamente tentou animá-la com um sorriso meigo e gentil, habitual vê-lo assim.
"Acho que isto te pertence"Disse ao retirar da sua sacola de lona o búzio que antes lhe tinha dado, e que haviam retirado. E que agora lhe davam novamente.
Recebeu o seu búzio nas mãos trémulas e agradeceu com um trémulo sorriso, pois na altura, nem conseguiu agradecer como queria, tal era a satisfação.
*
Já a noite caía, lenta, densa e escura e assustava-a com a sua escuridão... Encolheu-se mais um pouco na sua cama e abriu momentaneamente os olhos para vislumbrar o seu búzio antes de adormecer. E relembrou-se, novamente, do som e do cheiro que dele saía e que lhe recordavam o mar...