Os seguintes segundos desvaneceram-se da sua memória, pois havia apenas olhado, boquiaberta para Alberto. Aquela situação era estranha, que fazia ele àquela hora ali, na cozinha? Ele deveria-se perguntar o mesmo sobre ela. Estava de pijamas, desgrenhado, mas completamente desperto.
Fantasia pousa a taça na bancada, e prepara-se para sair da cozinha. Contudo, não o conseguiu fazer porque ele a interpelou:
"Para onde vais?"Ela revirou os olhos, mostrando-lhe que não lhe devia explicações. Apercebendo-se da atitude de rebeldia e atrevimento, que aquele olhar lhe pareceu, tornou a repetir, desta vez com uma voz mais grossa, mais :
"Para onde vais?"Obstinada e determinada como era, Fantasia repetiu o olhar, desta vez evidenciando mais a sua resposta.
"Primeiro vais-me servir o pequeno-almoço, que tenho fome!"Tornou Alberto com uma voz de comando, a que Fantasia reagiu com uma espécie de grasnido.
Estaria a ouvir bem? E mesmo que estivesse a ouvir bem, estaria Alberto a falar a sério? Quereria mesmo ele que ela lhe servisse o pequeno-almoço, enquanto ele descansava aquele corpo enorme e disforme nas cadeiras brancas da cozinha? Não a conheceria já minimamente para saber que ela não se regia pelas ordens de ninguém, muito menos dele, que a desiludira tão profundamente?
Enquanto Fantasia perdia-se nestes pensamentos, mostrando, por isso mesmo, um ar perdido, Alberto que já começava a ficar com muita fome, demasiada para seu gosto resolveu repetir a ordem, para o caso daquela retardada ainda não o ter ouvido:
"Não ouviste? Anda lá, que estou com fome!"
Apercebendo-se que, realmente, Alberto estava a falar ao sério, Fantasia recusou-se de uma forma tão evidente, que Alberto começava já a perder as estribeiras. Já havera se sentado na cadeira branca, que tinha rangido ligeiramente pelo seu peso, e agora, perante tal afronta, levantou-se de rompante, fazendo a cadeira virar perante a sua fúria. O seu vulto tornou-se, então enorme, e o cabelo cinzento, desgrenhado, e ligeiramente comprido contribui para lhe dar um ar mais assustador e sinistro. Avançou na direcção de Fantasia com uma determinação inabalável, já estava farto daquela pirralha que pensava que podia fazer tudo o que quisesse!
Então, com uma das suas mãos grandes e guedelhudas agarrou parte dos cabelos castanhos e compridos de Fantasia, e com o joelho deu-lhe uma violenta pancada na cara.
Sangue. Um jorro quente de sangue esguichou do seu nariz, escorrendo lentamente pela cara dela, fazendo uma espécie de curso, até à boca. Estava um pouco desnorteada. Sentiu sangue na boca e levou a mão à boca, ainda recuperando do choque. O nariz, na altura não lhe estava a doer, mas sentiu uma dor imensa, algo havia despertado nela, uma raiva e ao mesmo tempo pena por aquele homem que estava à sua frente. Que desprezível ser... Sentia ganas de o abanar, de o atirar contra as paredes, de o fazer experimentar o mesmo sabor quente do sangue, queria fazê-lo sentir indefeso, queria que ele soubesse o que era ser humilhado, queria...
Não. Não iria fazer nada disso, já decidira o que fazer, algo muito mais eficiente que isso. Tentou levantar-se. Uma mão no chão, uma mão na anca que estava magoada devido à queda que dera no chão, o uniforme sujo, o fio de sangue que pendia, o chão sujo, e ele, ali a rir-se na sua cara.
"Agora vai saber como obedecer-me e obedecer a Arminda, e a não se meter com os colegas!" Pensou Alberto, ainda com fome, convicto que Fantasia decerto lhe prepararia agora o pequeno-almoço. Em passadas largas, dirigiu-se para a cadeira que derrubara anteriormente, endireitou-a e sentou-se. Passou a mão pelo cabelo grisalho e tentou compô-lo.
Já de pé, Fantasia dirigia-se na direcção da gaveta onde se arrumava os talheres, os saca-rolhas, as facas, algumas chaves velhas, e pequenos objectos metálicos que aparentemente não tinham função alguma, mas que um dia, na opinião de Arminda iriam servir algum dia para algo.
"Preparas-me então o pequeno-almoço?"
Inquiriu Alberto. Fantasia acenou que sim com a cabeça. O sorriso de triunfo bailava nos lábios de Alberto, o que ainda provocou mais Fantasia. Fingindo então que iria preparar o pão, Fantasia abriu a dita gaveta, retirou de lá o que queria e decidiu fazer o que havera pensado.
O sol começava já a entrar na cozinha com uma vivacidade tal que não tardaria estaria toda a gente acordada...
Com os olhos semi-cerrados por causa da luz que entrava abundantemente pela janela, Alberto viu Fantasia avançar na sua direcção e percebeu que ela não iria de forma alguma preparar-lhe o pequeno-almoço....