Seriam aproximadamente 7 horas da madrugada, não sabia bem, estava desorientada, não conseguia orientar-se nem situar-se no tempo nem no espaço.
Correu um bom bocado, antes de chegar ao porto onde se encontravam pequenos barcos de pesca, saloios, rústicos, simples e humildes como os seus propietários.
Havia um pescador a preparar-se para partir para a labuta matinal, árdua, mas prazerosa, quando reparou nela, alta, com um ar traquinas e maroto, infantil, mas ao mesmo tempo havia uma réstia de mulher adulta e experenciada que deixava antever que ela era muito mais madura e vivida do que parecia. Pela sua roupa e pelo seu aspecto ensanguentado, o pescador presumiu que ela fosse da Instituição que ficava a alguns quilómetros da praia. Sim, só podia ser.
Fantasia, com os sentidos em sobressalto, tentando ver, ouvir, ou sentir a menor presença de pessoas ou de perigo, apercebeu-se que alguém a mirava com olhar curioso e incrédulo, sentia-se vigiada, mas não num aspecto maldoso ou pernicioso. Era um olhar de interrogação, de curiosidade, de quase compreensão pelo estado em que ela se encontrava. Então, contra tudo o que ela sentia e detestava nas pessoas decidiu aproximar-se do dito pescador, um pouco nervosa e pouco descontraida, mas a fome que sentia era maior, apertava-a, não a deixava pensar claramente, sentia a boca seca, o corpo torpe e fraco.
O pescador de seu nome, José, era um homem simples, de pouca cultura, de poucos estudos, nem sabia escrever o seu nome, mas percebia algo que nem os mais distintos doutorados percebem, uma linguagem escondida no olhar, nos gestos, uma espécie de código secreto que as pessoas têm... Pegou na sua sacola puída pelo tempo e pelo uso e tirou metade do seu almoço, e, imediatamente, estendeu-o no seu barco. Quando Fantasia se aproximou dele, ele não disse nada, apenas fez um gesto para o barco, ela percebeu pelos seus olhos, pelos seu modo de estar e de agir, que ele era uma pessoa inofensiva e pacífica, que apenas pretendia ajudar.
Saltou então para dentro do barco, cuidadosa, mas ainda com vigor, pois apesar de tudo era jovem e forte. Começou a comer ferozmente, tal era a fome que tinha. Quando acabou de comer, já refeita e saciada, e sentindo-se mais segura, é que reparou que o pesacdor não se tinha limitado a dar-lhe de comer, tinha-a levado no seu barco para a pesca também! De súbito, sentiu uma onda de pânico percorrer-lhe o corpo cansado, mas alerta, ficou com calor, e começou a respirar pesadamente. Nunca tinha andado de barco, nem tão pouco estado tão perto de tanto mar! Fechou os olhos e tentou não sentir as ondulações que se esbatiam contra o barco, que pareciam querer tragá-lo só de uma vez. José sentiu o seu medo, e parou de remar para que Fantasia não se assustasse mais, e esperou, esperou que ela tomasse coragem e abrisse os olhos, que reparasse na forma como o mar lhes dava as boas-vindas, este reflectia a luz ainda ténue do sol, e estava calmo...
Agarrou o seu búzio, o seu presente, que apesar de ser de metal, ela considerou ser uma espécie de búzios muito rara e especial, e abriu os olhos, lentamente. Sabia que o mar era seu amigo, mas não deixava de ter medo da sua imensidão, do seu poder e força. O que viu, fê-la esquecer o medo que sentira, a dor, o medo da ser prisioneira, fê-la esquecer que havia Instituição, de que Arminda estaria fula, nada... Não havia nada mais, apenas ela e o mar, e o céu límpido e claro, com o sol a despontar, o mar adquiria uma tonalidade esverdeada e permitia-lhe observar os animais que nele habitavam... Estava maravilhada, nunca pensou que o mar não tivesse fim, e olhou para trás e viu a costa, a praia, as casas, muito distantes, diminutas, insignificantes, sentiu-se dona de si, imponente, ela mesma! Pela primeira vez em algumas semanas falou espontaneamente, e disse apenas "Fantasia!"...
O pescador sorriu levemente de satisfação, já começava a gostar dela, da rapariga misteriosa, que parecia gostar de viver, de apreciar as coisas simples da vida, e decidiu continuar a remar. A rapariga abriu os olhos perante tal espectáculo; luxuriante, inebriante e excitante era aquele sentimento, que não conseguiu definir. Mas não se importou de deifinir, seja o que for, não sentia essa necessidade...O barco, apesar de pequeno, era conduzido velozmente pelas mãos experientes de José. Dividia o mar em dois, cortava as ondas em dois, parecia uma corrida entre o barco e o mar. Pôs a mão na água e sentiu. Sentiu o mar, veloz, fugidio, suave, e inatingível. Gostava daquela sensação, estava de mãos dadas com o mar, e eram amigos. Brincou com ele, acariciou-o e disse-lhe os seus desejos e segredos.
Continuou naquela brincadeira, naquele jogo de conhecimento mútuo, o resto do dia, enquanto José trabalhava, e sentiu-se bem, sentiu algo parecido com felicidade, mas muito para além disso. Sentiu-se livre...
música: Nothing in my way - Keane
sinto-me: fantasia...