Só no seu quarto, se é que poderia designar aquela divisão húmida e maltratada em que chovia dentro e que era abrigo também para pequenos animais como ratos, baratas, grilos, e outros, um quarto; parou e sentiu um grande alívio, se bem que sabia-o temporário. Ninguém a iria oportunar naqueles dias, não iria haver sinais de controlo, nem de prisão, nem de tristeza... Tudo estava a ir bem, bem demais, pensou ela. Nunca tinha havido um tempo em que guardara tanta esperança no seu íntimo, e simultaneamente, nunca havia tido tanto receio de perder aquilo que havia descoberto. O mar, o pescador, um pouco de liberdade, a sua pintura...
Não podia pensar nisso, não queria. Decidiu então afastar todos esses pensamentos da sua mente, resoluta, fechou os olhos e surgiu-lhe o desejo de pintar, de libertar o que sentia e o que pensava, mas não de uma forma intencional, não de uma forma distinta ou organizada. À sua forma, apenas. Abriu os olhos grandes e cintilantes e vislumbrou a tela vazia, inexpressiva e invadiu-a um turbilhão de sentimentos. Automaticamente, como sempre acontecia, pegou na caixa onde guardava as tintas, e nos seus pincéis e arrebatada pelo prazer que lhe dava pintar e de criar algo do nada, pintou grandes pinceladas de várias tonalidades, a maneira como ela fazia dava aos traços um textura estranha e irrepetível. Passado algum tempo neste frenesim de cores e pinceladas, Fantasia já estava completamente cheia de tinta, e então, acabou o quadro pintando com as próprias mãos.
Sabia que estava proibida de mexer nas tintas e em tudo o mais e de pintar, mas atreveu-se, e tinha uma leve certeza que Armanda nada lhe iria dizer ou fazer. E ao pensar nisso, recordou-se do que havia passado.
Frente a frente com Arminda, os dois olhos fixos nos dela, uma interminável luta de domínio e libertação, contudo este contacto visual não durou muito mais do que uns segundos, pois Arminda desviou o olhar para Ele. E, de seguida, Fantasia olhou também. Incrédula, olhou demoradamente para o indíviduo que ali se encontrava, alto, não sabia definir-lhe a idade, mas parecia-lhe bastante velho, os seus olhos era verdes e um tanto ou quanto superficiais. Não sabia quem Ele era, nunca o soubera, e honestamente não se interessava pela sua identidade. Apenas sabia que aquela pessoa, com quem nunca tinha trocado palavras ou impressões era uma espécie de anjo de guarda. Quando ele estava por perto, ninguém lhe ralhava, nem a obrigavam a nada. Sentia-se mais liberta que nunca.
Presumia que fosse importante, pois se assim não fosse, o Director Fernando não estaria lá, todo aprumado no seu fato azul-escuro que utilizava em ocasiões especiais, e a sua gravata cor de laranja, e os sapatos impecavelmente limpos. Era esta a imagem que ela guardava desse estranho indivíduo que se designava senhor e dono daquela Instituição. Nas poucas ocasiões que estivera na sua presença sentia-se extremamente incómoda e desconfortável.
E foi aí que ele olhou para ela, o seu anjo da guarda inventado pelo seu imaginário. Fantasia não sentiu qualquer emoção ou sentimento emanando daqueles olhos, que se dizem o portal da alma. Eram mortiços, vazios e ocos.
Durante os segundos aguentou aquele olhar de avaliação e de inspecção, mas sentia-se invadida, sentia-se transparente perante ele. Começou a sufocar no meio de tantas pessoas e de tantos olhares, e daí correu até ao seu quarto.
Toda esfarrapada, suja e despenteada, e no entanto parecendo uma fera selvagem com os seus olhos verdes ameaçando perigosamente quem se pusesse à sua frente, lá percorreu o trajecto que tão bem sabia. Nem reparou no novo rapaz que estava na Instituição, trazido pelo que considerava ser o seu anjo, mas que não passava de um funcionário do governo.