Acordou com uma carícia húmida do primeiro pingo de chuva que caía do céu já não tão claro, como de manhã, o sol já havia passado, e encontrava-se mergulhado no horizonte, o céu tinha uma tonalidade esquisita, de um azul desmaiado, rosa claro, e cor de fogo. A nuvens adquiriam formatos esquisitos, contudo divertidos. Sabia que seria uma questão de instantes até o céu se fechar numa careta e fazer desaparecer as nuvens feitas de algodão e as cores para se transformar num véu preto. Era um instante fugaz, precioso e irrepetível, e, portanto, decidiu aproveitá-lo.
Durou uns escassos segundos a previsão que ela fizera, conhecia bem o céu daquele lugar, sabia-lhe os caprichos e as manias. Continuava a chover, e ela, lentamente se levantou. Estava dorida, doíam-lhe as pernas, as coxas,os pés, os braços, o nariz... Tinha o corpo dormente, mas a chuva que caía miúdinha servia para acordar, lentamente, cada bocadinho de si. Sentir a chuva a cair na sua pele, gota por gota, devagarinho, foi acordando-a do torpor em que se encontrava.
Inspirou profundamente, tentando organizar os acontecimentos recentes, e tentando decidir o que faria a seguir, pois estava sem lugar para onde ir, não tinha ninguém a quem recorrer... Estava só.
A chuva miúdinha penetrava na terra, misturando-se com esta, consumindo as saudades, e a terrra virgem exalava um odor húmido. Fantasia conseguiu diferenciá-lo quando inspirou durante alguns instantes. Conseguia associar perfeitamente o cheiro àquele lugar, memorizou-o. Gostava dele.
A chuva ia caindo com mais intensidade, como se a terra chamasse por ela, pedisse por mais. Deu por si a pensar nessa situação. Ninguém a queria chamar, ninguém esperava pela sua presença, não era a primeira vez que esse pensamento surgia na sua mente. Desde que se lembra que estava sozinha, simplesmente isso não ia mudar agora. Se bem, que no seu
íntimo, ela desejasse que houvesse alguém que esperasse a sua visita, não certa, mas a esperasse, se preparasse para ela, sem nada apenas com esperança.
As gotas grossas de chuva que embatiam nas copas frondosas das ávores verdes que ali se encontravam, iam molhando-a, o seu cabelo já se encontrava castanho escuro, por estar molhado, a roupa amarela da Instituição colava-se ao seu corppo, já de mulher, e os pés, começavam a ficar com lama. Lama e sangue. Descalços, tinham algumas feridas que tinham resultado da sua fuga da Instituição.
Fuga!! Finalmente tinha escapado. E agora que se encontrava livre tinha tantas opções, que nem sabia por onde iria... Decidiu que seria melhor sair dali, caso não se desse a situação de a irem procurar ali. Pedro vira-a, e ela podia jurar que ele a teria denúnciado mal chegasse à Instituição. Como ele a irritava! Com aquele ar arrogante, de sabe-tudo, e ao mesmo tempo, de distanciamento, de egoísmo, que irritavam igualmente Fantasia.
Seguiu lentamente um trilho que havia na mata, tentando absorver tudo o que havia à sua volta, gostaria de ser não uma viajante naquele lugar, mas sim parte do mesmo lugar, poder conhecer as plantas e os animais que por ali se encontravam escondidos ao pormenor, saber-lhes os movimentos, as expressões.... Ia tocando nos troncos velhos e rugosos das árvores, como se tratasse da palma da mão de álguem velho, que se tornara sábio através do labor da vida, um avô talvez... A noite estava escura, apenas vagamente iluminada pela lua em quarto crescente. E Fantasia foi vagueando pela mata.
*
Encontrava-se na praia, já estaria a caminhar há muito tempo, pois agora que parara para poder vislumbrar de novo o pôr do sol, como no dia anterior o fizera na mata, os pés doíam-lhe e as feridas ardiam. Mas, enquanto pudesse ter esses momentos de êxtase ao observar tais maravilhas, pouco lhe importava. Ver o mar outra vez, numa tonalidade azul-esverdeada, com laivos de branco da espuma, que ia e vinha uma vez mais molhar a areia, esta que perdoava as brincadeiras daquele menino maroto, consentindo a sua volta e ida, uma e outra vez. Avançou, lentamente, enterrando os pés na areia, sentindo os golpes queixarem-se daquele contacto indesejável. Mas foi avançando. Fria! A água encontrava-se fria. Gostava da sensação que isso lhe transmitia, e foi passando a mão lentamente à superfície da água, como se fosse um animal qualquer à espera de festinhas. A água dava-lhe pela cintura. Nunca antes tinha estado daquela forma no mar, também nunca tinha estado livre como agora... Sentia vontade de se deitar, de descansar, nas não queria abandonar o mar, será que este se importasse que ela se deitasse ali, com ele? Lhe desse a mão e fechasse os olhos, só por um pouquinho?! Enquanto tentava tomar uma decisão, ouviu alguém chamar por si. Virou-se para trás, momentaneamente desperta dos seus devaneios, e viu-o. José, o pescador, esbracejando na praia, como um louco. Não percebia a razão daquele momento de ansiedade. José era um homem do mar, um homem que aprendera a ser paciente face aos caprichos do mar...
Chegou ao pé dela, mal podendo respirar, e por entre dois suspiros mais profundos apontou-lhe a sua casa, que ficava a pouca distância da praia. Fantasia não sabia como interpretar aquilo, sentiu-se confusa, cansada e com fome, mas por fim, lá acabou por aceitar o convite, afinal de contas, José era o único em quem podia confiar.
Ainda conseguindo ouvir o respirar pesado de José, e já podendo antever alguns pormenores da casa caiada de branco do simples pescador que ficava já a uns meros dez metros, Fantasia reconheceu também uma silhueta que a fez estremecer. Pedro estava ali!
Por momentos sentiu-se paralisar, a roupa encharcada, tornara-se pesada, e os pés não respondiam ao que queria... Tinha de sair dali depressa, tinha de conseguir escapar, não fugira da Instituição para ser apanhada daquela forma! Conseguindo,então mover-se, Fantasia conseguiu recuar uns passos, e virar-se, e então, inesperadamente, como algo tivesse accionado na sua mente, alertando-a do verdadeiro perigo, desatou a correr pela praia. José, a quem a reacção repentina de Fantasia não tinha passado desapercebida, agiu também, agarrando-a , antes que ela pudesse, efectivamente fugir.
O braço apertou-a, fazendo-a lembrar de Alberto, recordações essas que tentava afastar para um canto recôndito da sua memória, mas que agora ganhavam vivacidade, como se estivessem a ocorrer novamente naquela altura.
"Não vais a lado nenhum."Disse calmamente o pescador, como se aquilo já fora predestinado antes, decidido sem o consentimento dela.
Com os olhos marejados de lágrimas, conseguiu ver Pedro avançando na sua direcção, certamente ostentando um sorriso de vitória e orgulho. Mas não conseguia afirmar com toda a certeza, estava prestes de rebentar de raiva e frustração!!! Como pudera ser tão ingénua a ponto de confiar em alguém que não conhecia, apetecia-lhe bater nele, fazê-lo sentir o mesmo jorro de sangue quente que ela sentira quando Alberto lhe batera, ele não podia devolvê-la à Instituição, morreria se para lá voltasse, ainda que o seu corpo se mantivesse vivo.
Pensamentos como este perpassavam-lhe a mente, cada vez mais depressa, aumentando num ritmo alucinante a sua raiva e dor. Sentia a cabeça a latejar, e faltavam-lhe as forças...Pôde ainda ver o sol levantar-se sobre o mar, e iluminar tenuamente a paisagem, antes de cair desmaiada no chão.