Does it make any sense?! No? So, welcome.
30
Mar 08
publicado por Andi, às 17:57link do post | comentar | ver comentários (2)

Depois de ter lido Chocolate,  ler esta continuação foi simplesmente delicioso. Sendo um livro que vai de encontro ao que já estávamos habituados no outro, toda a magia que envolve a confecção do chocolate, o fabrico dos doces, o pormenor dos enfeites,acho que o ultrapassa levando-o para uma outra perspectiva mística mais forte, e descentraliza a figura de Vianne, para passar a ser vital também a presença de Anouk, e de Rosette.

 

 

Gostei das várias perspectivas que o livro transmitia, e que me deixou, por vezes, quase sem fôlego, tal era a curiosidade. Coisa que já me venho habituando nos livros de Joanne Harris. Gostaria também de ver este livro adaptado para cinema, seria interessante ver o resultado, se bem que geralmente, fico um pouco decepcionada, e só um aparte, gostaria de ver Johnny Deep outra vez como Roux.

 

sinto-me: ansiosa
música: Clocks - Coldplay

29
Mar 08
publicado por Andi, às 16:18link do post | comentar

Outro dia vi este filme, francês (isto de falar sobre filmes franceses está-se a tornar um hábito...), contudo de desenhos animados, o que não significa necessariamente que seja só para crianças. Pelo contrário, trata de um assunto, ou melhor, de vários, actuais e impertinentes.

 

O filme é feito através da perspectiva de uma rapariga iraniana, Marjane, que cresce num Irão fragmentado e sangrento, e que sofre as consequências disso. Apesar de ter aspectos mais negros, se bem que reais, o filme foca aquelas pequenas coisas da infância que depois se considera parvoíces, mas que nunca se esquecem. Existem também cenas que me fizeram rir à gragalhada, não um humor fácil e evidente, mas sim trabalhado e inteligente. Como esta cena, que achei deliciosa, depois se virem o filme, irão perceber melhor o seu contexto. Outro  aspecto que também me agradou foi a exploração das cores, e a maneira simples como o filme é apresentado.

Recomendo!

música: Eye of the tiger - Survivor
sinto-me: com vontade de matar dentistas

26
Mar 08
publicado por Andi, às 18:40link do post | comentar | ver comentários (4)

1 de Novembro de 1901

O vento soprava, como sempre soprava, naquela aldeia, agreste e selvagem, como se quisesse arrancar todas as casas e plantas, e levar as pessoas consigo, levar tudo à sua passagem. O vento insular era sempre assim, diziam os mais velhos, igualmente os considerados mais sábios. Mas ganhava força pela proximidade do mar e da montanha, que encurralavam a freguesia da Agualva, como um cerco, embora a aldeia não se deixasse sucumbir, e espalhava-se de uma forma irregular, com os seus braços de polvo, pelos terrenos adjacentes.

O seu uivo ouvia-se passar entre as casas, nos quintais, palheiros, cerrados, fazendo notar a sua presença. Mas nesse dia não se ouvia só o vento. Ouvia-se também a voz de Maria da Conceição, estridente e aguda, liberta numa tentativa vã de libertar-se da dor, e também para conseguir fazer mais força. Naquelas alturas, maldizia o marido, que a tinha arrastado para aquela vida de sofrimento e trabalho árduo, zangava-se com as duas parteiras, que já lhe haviam ajudado no nascimentos dos dois primeiros rapazes, blasfemava , para no minuto seguinte prometer que haveria de ir e vir à Serreta a pé, por altura das festividades, como já antes fizera. Mas assim que a dor passava, esquecia as dores quase insuportáveis, e tudo voltava ao normal.

Já há cinco horas que Maria se encontrava deitada na sua cama, com as pernas arqueadas, e as mãos agarradas à beira da cama, tentando dar à luz ao seu filho, ou filha, ainda não sabia. As duas parteiras, Lucinda e Guadalupe andavam de um lado para o outro, atarantadas, dando ordens às vizinhas, primas, cunhadas e amigas que ali se encontravam naquele momento de grande aflição para todos.

"Vai tratar dos pequenos, que estão lá fora."

Disse Guadalupe à prima mais nova de Maria, que deveria ter uns dez anos, e que mal saberia cuidar de si, mas que deveria aprender já a tratar das crianças, porque, embora o seu corpo fosse trigueiro e baixo, depressa cresceria e teria filhos, tal como Guadalupe, que teve o primeiro de oito aos catorze anos.

"Vai buscar toalhas."

"Vai chamar o Manuel, que deve estar nas terras, vê se ele pode cá vir."

"Prepara água."....

Eram algumas das ordens dadas pelas parteiras, que se encarregavam da situação. Maria estava a achar aquele parto demasiado demorado, e era-o,em comparação com os outros. Começava a ficar exausta, nem tinha comido nada durante o dia inteiro, e já eram quatro horas da tarde, embora se tivesse levantado com o sol, às sete da manhã. Sentia-se a sugar pela cama adentro, como se a terra a chamasse, como se a quisesse junto dela, debaixo dela, começava a ver tudo enevoado, estava prestes a desfalecer, e ainda só aparecia um pouco da cabeça...

 

Era uma mulher, caramba! As mulheres são fortes, são resistentes, são... Não sabia definir, mas sabia que não se podia vencer por aquela criança que teimava ficar dentro de si, não se podia deixar vencer pela terra, que chamava por ela. Afinal, tinha tido o seu primeiro filho com dezoito anos, e desde cedo estava habituada ao trabalho duro no campo, e era uma mulher do campo, robusta e delicada ao mesmo tempo, iria conseguir dar à luz àquele filho, aquele pequeno rebento que antevia ser teimoso como tudo!

 

 

Um grito profundo e rouco,  vindo das entranhas de si mesma,  ecoou pelas paredes brancas da casa, e foi fazendo eco, pelo caminho fora, anunciando a notícia, não que já  não se soubesse que a Maria do Hildeberto Fonseca, ou sou Fonseca, "estava parindo um filho".

 

As parteiras gritavam também, agarradas entre si, num esforço final, em uníssono , clamando por aquela nova vida, e não pelo fim de duas.

 

Durante este instante, e num derradeiro esforço épico de Maria da Conceição, o bebé gorducho e quase roxo saiu num misto de sangue e tecidos, seguido por mais sangue, sangue e sangue. As parteiras pegaram no bebé e verificaram que era uma menina, e disseram-no a Maria da Conceição, mas esta não ouviu pois tinha perdido os sentidos pela grande perda de sangue, que escorria pelos lençóis e toalhas imaculadamente lavados na ribeira, a sabão azul, com o aprumo que Maria se gabava de ter. E ali estavam eles, ensopados de sangue, até que Maria, os fosse lavar de novo...

 

Lavaram a bebé  colocaram-lhe uma fralda de pano, e vestiram-na com um fato branco, dizem que dá sorte vestir um fato branco no primeiro dia, os seus irmãos haviam vestido o mesmo. E após Maria ter recuperado, deram-lhe a filha, a sua filha. E enquanto Maria olhava ternamente para a filha, que mal abria os olhos, mas que podia ver que eram verdes, como o mar em dia de amuo e de teimosia.

 

"Que nome lhe vais dar Maria?"

 

Perguntou Guadalupe.

"Eu e o Hildeberto pensamos em Luzia, como somos devotos de Santa Luzia."

"Bonito nome, vai ser uma menina linda,  e vai-te ajudar muito nas lidas da casa!"

Exclamou Lucinda, babada para a bebé que tinha ajudado a nascer, orgulhava-se do que fazia, como se fosse uma espécie de deusa que desse a vida aos bebé s que fazia nascer.

Nesse momento, o sino pesado da igreja, tocou as cinco horas, e também anunciou que a missa de celebração do Dia de Todos os Santos tinha terminado. Provavelmente, a maior parte da freguesia iria até à humilde casa de Maria e Hildeberto ver a sua filha, prezados com a roupa da missa, que só usavam ao Domingo e  dias de festa, andando em bicos de pé no chão de terra batida, para não sujarem os sapatos, os únicos que tinham e que usavam tão frequentemente como aquela roupa.

 

E assim foi, o resto da família, vizinhos e conhecidos veio ver a pequena Luzia, que acabava de passar por uma viagem vertiginosa e teimava em fechar os olhos, mesmo durante os próximos dias, negando estar ali, querendo provavelmente voltar atrás, como muitas vezes faria posteriormente.

Enquanto todos olhavam a pequena de olhos verdes, que não se conseguiam ver, o vento continuava a assobiar por entre as canadas e ruas da aldeia, fustigando tudo à sua passagem.

sinto-me: ...
música: A message - Coldplay

23
Mar 08
publicado por Andi, às 23:24link do post | comentar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Solidão.

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música: Swanee River Rock - Ray charles

17
Mar 08
publicado por Andi, às 16:02link do post | comentar

Com o começo das férias, sinto-me nostálgica. Estava a precisar descansar, bem sei, mas não gosto de ficar o dia todo sem fazer nada, sinto-me inútil. Sinto-me mergulhada numa latência, como um animal que sofre uma metamorfose, e espera pela sua forma final.Sinto que tenho de romper essa casca grossa de impedimentos estúpidos que me toldam, que me limitam, de leis e regras que surgem do nada e que são desprovidas de sentido. Não me liguem, estou com um síndrome qualquer devido a estar em casa há demasiado tempo (uma manhã e um pouco da tarde) e que provoca uma espécie de demência, temporária, espero.

 

E como se não bastasse, tenho muitas saudades tuas... Não sou de cristal, como digo, mas sou lamechas e tu sabes... 

 

Pronto, e fica aqui mais um post irracional!

 

 

música: Howie Day - Collide
sinto-me: nostálgica, what else?

14
Mar 08
publicado por Andi, às 21:38link do post | comentar | ver comentários (9)

 Os seus olhos abriram lentamente, vislumbrando, primeiro uma névoa, e depois a imagem nublada foi clarificando e tornou-se nítida. Tinha acordado. Encontrava-se confusa e esquisita. Não sabia onde estava, o que tinha acontecido nos últimos, momentos? Horas? Dias? Não sabia. Não tinha qualquer noção na sua mente, a não ser a da sua existência num mundo estranho e inócuo. E ainda assim, não sabia se estaria numa espécie de sonho estranhamente lúcido e real... Pois não tinha memória de alguma vez ter estado naquele local...

 

Memória! Conceito meramente inventado pelo Homem para não cair nas garras do desespero, para poder almejar, pelo menos, o controlo do incontrolável, a sensação de segurança de quem mantém o que é necessário, e exclui o que não é da sua mente. Vã segurança! Comparou aquela segurança àquela que tinham as pessoas falsamente crentes, agarradas à salvação que pensavam conseguir seguindo as regras de moral ditadas por alguém mesquinho, que Fantasia não sabia quem era... Laivos de imagens da procissão da aldeia a passar surgiu-lhe. As crianças pequenas e inocentes, vestidas de um branco imaculado seguiam em fila, com a vela trémula nas mãos, atrás do andor do padroeiro da freguesia que Fantasia não fazia a mínima ideia. Arminda costumava ir descalça, vestida de preto da cabeça aos pés, murmurando uma ladainha impossível de perceber, enquanto ela e os restantes eram obrigados a ir atrás dela... Arminda!!! Já começava a lembrar...

 

As imagens começavam a aparecer na sua cabeça, vindas daquela associação, enquanto ela tentava reconhecer o quarto onde estava. Não, não o conhecia, não estava na Instituição, portanto. Conhecia todos os recantos da Instituição, vivia lá desde que se conhecia. Todos os rostos lhe eram familiares, e no entanto, tão iguais entre si, não falava com ninguém e ninguém falava com ela à excepção de Joana. Joana e a sua recente ida ao mercado, que dia fantástico...

 

O quarto estava pintado de cal, branca como a espuma do mar, e transmitia um aspecto de humildade e limpeza, exceptuando duas pequenas manchas de humidade num canto do quarto. As cortinas e a manta da cama eram ambas azuis escuras, contrastavam com as paredes alvas pontuadas aqui e ali com algum quadro ou fotografia. Ao canto do quarto pequeno e limpo estava uma arca de madeira pesada, tinha um aspecto antigo, e exibia algumas cicatrizes provavelmente feitas por algum miúdo traquinas, Fantasia pensou. Aos seus pés tinha uma manta de retalhos velha, com cores desbotadas, feita de tecidos que restaram de blusas, calças, vestidos feitos à mão por alguém paciente e trabalhador.

 

Sentou-se na cama, que rangeu sob o seu peso, e lentamente levantou-se. Sentia a cabeça pesada, e os joelhos ameaçavam ceder, estava fraca, e, teve noção que estava ferida nos pés e nos joelhos. Respirou profundamente, tentando arranjar forças para sair dali, ou, pelo menos saber onde estava, se estava em segurança, e, ao mesmo tempo, levantou a cabeça, e olhou pela janela, para os campos luxuriantes vestidos de verde vivo, e amarelo, das ervas azedas, e o azul claro do céu, o branco das nuvens, o rosa manchado das hortênsias que haviam no quintal... Maravilhava-a toda aquela pujança colorida que a Natureza exibia, tão complexa, e ao mesmo tempo tão simples, que passava muitas vezes imperceptível aos olhos das pessoas.

 

Estava  imóvel, a olhar pela janela, quando ouviu a porta abrir-se atrás de si, e um torpor apoderou-se do seu corpo, impossibilitando que ela se virasse imediatamente para trás.

 

"Fantasia..."

 

Conhecia aquela voz. Era Pedro! Pedro, que a tinha tentado apanhar quando ela fugira da Instituição, e que a denunciara, juntamente com José! Agora lembrava-se de tudo, tudo se tornava nítido agora... Como estava revoltada com aquela traição de José, que era seu único amigo, e de Pedro também, a quem até já tinha perdoado o roubo do búzio, embora detestasse que mexesse nas suas coisas, alterassem a sua ordem!!

 

A sua única incógnita era saber onde estava, e como sair dali! Não podia entrar em pânico, mas sentiu uma onde de calor percorrer-lhe o corpo e o seu coração batia acelerado , sentia-o como a terra sente os cascos de um cavalo enfurecido que corre.

 

"Fantasia..."

 

Disse ela. A voz saía aparentemente segura, mas conseguia-se descortinar uma ponta de nervosismo e raiva. Já antevia tudo, como se de uma visão premonitória se tratasse, o seu retorno à Instituição, o regozijo evidente no sorriso sarcástico de Arminda, ver de novo aquela besta do Alberto, voltar à prisão dissimulada, ao cativeiro sufocante que era a rotina daquele lugar...

 

Ele avançou alguns passos, e entrou no quarto, em passadas largas. E sentiu, por instantes, os olhos grandes e um pouco brilhantes, de lágrimas talvez - pensou ele, de Fantasia, dela, ela...

 

Ela recuou os mesmos passos, encostando-se à parede alva daquele quarto. Percebendo que podia ser mal interpretado, Pedro decidiu explicar tudo a Fantasia, não a queria assustar, tão pouco magoar.  Voltou a recuar, e sentou o seu corpo alto e esguio no chão esfregado do quarto. Cruzou as pernas, e passou a mão pelos cabelos castanho escuro, afastando-os dos olhos castanhos e doces, que ficaram completamente destapados. 

 

"Eu não estou aqui para te magoar, nem fazer mal."

 

Começou por dizer Pedro, tentando acalmar Fantasia, ainda sentia a sua desconfiança apontada pelo olhar de soslaio permanente e dos lábios sem expressão dela.

 

Fantasia estava, de facto, desconfiada, não confiava em Pedro, sabia que ele a tinha entregue, e que lhe tinha feito algo, para acordar ali, sem saber dos acontecimentos recentes, pelo menos até quando o viu na praia, nem sabia se tinha havido mais alguma coisa após isso... Nem sabia que dia era, também nunca lhe interessava, essa convenção de tempo era inócua para ela, ela dividia o tempo pelo seu ritmo natural, mais lento no Inverno, e mais rápido no Verão, constante e mutável, obstinado e tolerante. Mas decidiu que não poderia fazer nada, por enquanto, iria ouvir o que lhe tinha a dizer, e depois resolveria como fazer.

 

"Vou-te contar desde o início, para perceberes. Eu chamo-me Pedro, como já deves saber, não que isso te interesse, mas adiante, e o meu apelido é Ferreira. O José também é Ferreira, ele é meu parente, é meu tio. Conheço-o desde pequeno, e é dos poucos, senão o único, da minha família com quem tenho um bom relacionamento, e até um relacionamento. Fui parar até à Instituição porque os meus pais maltratavam-me, e obrigaram-me a trabalhar desde miúdo, e portanto, deixaram-me a cargo de um funcionário governamental, o Alberto, e o resto tu sabes."

 

Aclarou a voz. Não sabia bem o que ganhava ao contar-lhe tudo, se calhar nem iria alterar nada, mas não conseguia mais guardar aquilo tudo para si. Portanto, olhou para o chão, para não ter que enfrentar o olhar inquiridor de Fantasia, e prosseguiu.

 

"O meu objectivo nunca te foi chatear, na noite em que chegaste, reparei em ti, quando passaste pelo corredor, parecias chateada, e a única não interessada em prender a minha atenção. Todos pensavam que era filho de Alberto, embora ele me tratasse como tal, não de uma maneira afectuoso, mas com rigidez, com um orgulho prepotente de ter um rapaz forte e ajuizado , embora eu ache que não seja nenhuma das coisas"

Ri-se.

 

"Enfim, apenas quis-te conhecer um pouco melhor, já que a Instituição seria o meu lar... Portanto fui até ao teu quarto, no dia seguinte, mas ainda estavas a dormir, parecias estar a dormir tão descansada, que não te quis acordar, ia-me embora, mas foi aí que vi as tuas coisas... Os teus quadros... Os teus pequenos objectos, que na altura pensei que recolhesses por ter algum significado, incluindo o búzio. Retirei-o, pensando que não te importavas, já que eu te ia devolver, não queria ficar com ele, queria encontrar um semelhante para te oferecer..."

 

Nesta parte, Pedro corou um pouco, não estava habituado a dizer aquelas coisas, ainda por cima a raparigas, era estranho, contudo não parou.

 

"E foi então que decidi ir falar com o meu tio, que, como sabes, é um homem do mar, conhece-o e a alguns dos seus mistérios. E, fui-lhe perguntar onde ele saberia encontrar um búzio parecido. Ele respondeu-me que te conhecia e que tinha sido mesmo ele a entregar aquele búzio, e também acrescentou que não te deveria ter tirado, aí já me apercebi que poderias ficar realmente chateada, portanto dei-lho e fui procurar um, e quando me encontraste, era precisamente o que estava a fazer.  Claro que depois de cair à agua, não procurei mais búzio nenhum..."

 

Será que ele está mesmo a dizer a verdade? Pensava Fantasia, enquanto Pedro continuava a sua extensa exposição dos factos...

 

"Sinto-me culpado pelo raspanete que levaste da Arminda e do Alberto, e por teres sido castigada por mim, ainda tentei convencer Alberto a não te dar nenhum castigo, mas o máximo que consegui foi ele não te dar um castigo que envolvesse fome ou violência, porque... ninguém merece isso..."

 

Pedro parou, repentinamente, de falar e instalou-se um silêncio um pouco incómodo em que o barulho da respiração e de algum movimento involuntário faziam-se ouvir perfeitamente. Não era momento para parar a conversa, portanto, aclarou a voz e prosseguiu.

 

"Os dias seguintes mantive-me afastado de ti, para te afastar de problemas, embora a tua presença sempre me causasse curiosidade, queria, e quero saber mais de ti... Eu sei que pareço completamente irracional e demente, mas não consigo deixar de dizer a verdade! Bem, continuando, as coisas permaneceram mais ou menos calmas até há uma semana atrás... Quando o Alberto tentou fazer-te mal, ele até não é má pessoa, mas não sei porquê detesta que lhe façam frente, ainda por cima mulheres."

Pedro reparou na careta de desagrado que Fantasia fez... Compreendia que ela odiasse Alberto, mas tinha aprendido a não ver tudo a preto e branco, aliás, a maior parte das coisas que interpretava eram cinzentas. Afinal de contas, Alberto tinha-o ajudado quando mais precisou, e estava-lhe muito grato por isso.

 

"Quando ouvi os gritos naquela manhã, e fui à cozinha e vi toda aquela situação, o sangue, Alberto gesticulando que nem um doido, e a espumar de raiva, percebi que algo mau se passara, e como não te via, fui-te procurar. Depois vi-te a fugir da Instituição e percebi que não regressarias, não queria que fosses sozinha, portanto fui atrás de ti... Mas perdi-te. Portanto, regressei à Instituição e fui buscar as tuas coisas, e alguma comida e água, com a ajuda de Filipa que disse que também te queria ajudar, embora não tivesse a coragem para fugir dali, e saí também, não me ia adaptar de qualquer forma, e nunca cheguei a conhecer-te. Pensei que irias pedir ajuda ao meu tio como era com ele que falavas, portanto telefonei-lhe antes de sair, e dirigi-me à sua casa, onde estamos agora. E vi-te. Fiquei contente por estares bem, pelo menos, relativamente bem. E foi aí, que desmaiaste. Ficaste muito fraca com o sangue que perdeste, e a tua fuga pela mata não ajudou muito. Portanto, desde há cinco dias tens ficado aqui a repousar. Tiveste febre muito alta, e passavas metade do dia a dormir, é perfeitamente normal que não te recordes, por enquanto... Mas basta de conversa fiada, já falei demais, só quero saber agora se aceitas a minha ajuda e companhia. Basta fazeres sinal com a cabeça."

Sabia que ela poderia considerá-lo um doido varrido, um psicopata qualquer, e que muito provavelmente não aceitaria a sua ajuda, mas tinha que tentar, nunca saberia se nunca o fizesse.

 

Fantasia estava perplexa, estava confusa com aquilo tudo, no entanto a expressão de Pedro parecia sincera.  Tinha aprendido a não confiar em ninguém a não ser em si própria, e mesmo assim errava demasiadas vezes. Iria aceitar, e acreditar em Pedro, que parecia verdadeiramente preocupado com ela. Acenou afirmativamente, para felicidade de Pedro que logo lhe mostrou um sorriso rasgado e genuíno.

 

"Obrigado Fantasia. Anda, segue-me. Deves ter fome!"

Levantou-se de rompante, abriu a porta e saiu. Fantasia seguiu-o, e foi apreendendo pequenos pormenores da casa, os tapetes rudes, pequenas flores em vasos, no estrado, junto da janela, algumas peças de renda que pendiam de um móvel tosco...

 

Havia um cheiro no ar, era... peixe! E começava a ficar com fome, já comia qualquer coisa, e aquele cheiro abria-lhe um apetite voraz. Chegados à cozinha, Fantasia encontrou um homem, que identificou como José, e uma mulher, com pele grossa curtida do trabalho, certamente, mas com um ar doce e maternal, que supôs ser mulher do pescador, como ele o confirmou a seguir, apresentando-a como Clarisse .

 

O casal mostrou-se extremamente simpático e as desconfianças de Fantasia, bem como o seu normal isolamento caíram por terra, e tornou-se afável. Já não se recordava de ser mimada assim há muito tempo. Jantaram na cozinha, numa mesa apertada, mas acolhedora, e comeram com fartura, embora Fantasia suspeitasse que eles geralmente não comiam assim. Comeu tanto e tão à vontade que até Clarisse , lhe arranjou um pouco de pão de milho e peixe para a viagem. Fantasia interrogou-se de que estaria ela a falar, mas continuou a comer.

 

Depois de comer, reuniram-se na pequena sala, que era contígua à cozinha e conversaram, sobre coisas banais, mas que pareceu a Fantasia uma conversa importantíssima , se bem que ela não participou muito na conversa, a sua capacidade comunicativa nunca fora das melhores, e até agora nunca lhe tinha feito falta, mas agora sentia-se um pouco irritada por não conseguir fazer perceber-se, ainda que gesticulando e falando atabalhoadamente, percebia-se.

 

A conversa assim decorreu, até que veio à baila a fuga de Fantasia e de Pedro. José, então informou os dois que tinha ouvido comentários dos pescadores acerca da responsável da  Instituição, oriunda da aldeia, e solteira desde sempre, que ela tinha acusado um funcionário governamental de assédio, pelas próprias palavras dos pescadores amodes ca sinhora era quas'uma sposa pa ele, tava sempre a fazer-le o qu'ele qria , e ele tinha uma mulher e inté uns puquenos , uma pouica vergonha...". Pelo que José conseguiu saber, Arminda fora despedida, e Alberto tinha tido graves problemas com a mulher, mas lá permaneceu casado, e perdeu estatuto e prestígio no emprego, embora não o tenha perdido. Mas o mais relevante para os dois fugitivos, era que o Director da Instituição já tinha ordenado que o procurassem, não com muito alarido, pois queria manter a máxima discrição, e não queria alarmar a população.

 

"Como eu já previa desde o início, não podem ficar aqui!"

 

Afirmou peremptoriamente José. Clarisse concordou, abanando a cabeça. Pedro olhou para o chão, não vendo outra solução. Fantasia... Levantou-se e disse que não! Embora detestasse a Instituição e tudo o que ela representava gostava daquela terra, tinha-se habituado a ela, ao mar, não queria deixar as coisas que conhecia e de que gostava... Gostava da sua rotina, da familiaridade das coisas.

 

Não houve outra opção senão partir, era partir ou ser apanhado, e perante esta situação Fantasia concordou em ir, mas perguntava-se para onde, não conhecia mais nada para além daquela pequena vila, desconhecia o tamanho do mundo, a sua aleatoriedade, a sua multiplicidade, semelhanças e diferenças, mas já tinha mudado tanto para conseguir aquela libertação que ansiava desde sempre, a libertação daquele peso que carregava e que não o sabia definir nem limitar...

 

*

 

O mar não estava calmo, nem estava tempestivo, estava... Ansioso, expectante pelo que haveria de vir. Ela também. Lambia-lhe os pés desta vez não descalços, mas sim, dentro de umas sandálias confortáveis que José lhe arranjara. Entrou para dentro, levando consigo algumas roupas que Pedro trouxera da Instituição, juntamente com alguns dos seus desenhos e materiais de pintura e ainda o farnel que Clarisse tinha gentilmente arranjado. Após ela entrar, entraram também Pedro e José, que pôs o motor do barco a trabalhar e os levou a abandonar o porto, que começava a ficar distante com Clarisse a acenar, composta no seu vestido de cores tristes.

 

Começava a ficar um pouco angustiada, pois o desconhecido assustava-a um pouco, tinha medo de não gostar, tinha medo de não se conseguir libertar, tinha medo que fosse pior, tinha medo... Pedro percebeu essa angústia e aproximou-se dela, sentou-se ao pé dela, e estendeu-lhe a sua mão, um pouco trémula, mas bondosa. Fantasia, com lágrimas que ameaçavam cair, via-o um pouco desfocado. Nunca dera a mão a ninguém, mas tinha medo, e precisava de algum apoio, carinho. Sentia-se completamente parva, desprovida de razão, mas aceitou a mão de Pedro. Ele apertava-a forte. Uma lágrima escorregadia molhou as mãos unidas de ambos. Ele olhou docemente para ela, embora ela não o conseguisse ver, tinha a cabeça baixa.

 

"Fantasia..."

 

Disse Pedro, deslumbrado com o que via.

 

"É uma ilha!"

Aquele pedaço de rocha vulcânica erguia-se agora diante deles, imponente e orgulhoso como Fantasia, verdejante e vivo, como se de uma criança se tratasse, uma criança traquinas que lhes tinha pregado aquela partida. Várias aves sobrevoavam a ilha, e dada a distância a que se encontravam, não conseguiram distinguir onde ficava a vila e a Instituição em que eles tinham vivido toda a vida, mas Fantasia sabia que ela estava algures lá, e que a tinha deixado, finalmente.

 

"É uma ilha, e eu nunca soube...!!"

Ela também nunca soubera. Mas agora sabia-o. E não iria se esquecer disso.

 

 

 


 

 

Este foi o último capítulo de Fantasia, o que não significa que Fantasia pare aqui, estanque. Ela continuará enquanto eu continuar, porque embora não seja eu, existe em mim, e eu nela. É difícil definir até quanto eu retiro aspectos da minha vida e coloco na de Fantasia. Fantasia... apenas! Queria agradecer aos meus amigos que me apoiaram e incitaram a escrever, como o JP e o Hélder (é sim com acento), e ainda à Mel de Vespas, a minha leitora mais assídua.

Por fim, queria dedicar esta história ao Jossy , porque foi a pensar nele que escrevi isto, porque és o meu Pedro, e me dás a mão quando preciso... Enfim, é por ti que sou irracional...

 

música: All at once - Jack Johnson
sinto-me: Um pco lamechas

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