O sol encontrava-se escondido por trás de nuvens negras e espessas que teimavam em aparecer, e que ameaçavam a metrópole de chuva iminente. Aquela chuva miudinha e irritante, ao início, e depois grossa, formando autênticas cordas de água. Opacas, frias, e com uma intimidade provocativa, imiscuindo-se nas roupas grossas dos transeuntes, e deslizando pela pele arrepiada de suores frios. Existia quem se pusesse debaixo da chuva só para sentir essa sensação, havia também quem a evitava a todo o custo.
Cristiano era uma dessas pessoas. Encontrava-se na estação de metro, suja e vandalizada, com cartazes publicitários anunciando produtos inúteis e fúteis , na sua opinião, e que escondiam as paredes repletas de frases escritas a corrector denunciando as paixões de miúdos imberbes e raparigas ingénuas e sonhadoras.
Nada disto lhe dizia algo, nenhuma recordação, memória por mais breve que seja era desperta na sua mente. Aliás nem conseguia pensar em nada, estava tanto frio que parecia que cortava, mas estava protegido ali, da chuva... e das outras pessoas. Os outros... Detestava a sua companhia, os seus olhares perscrutadores à procura de um sinal, uma fraqueza, olhares insaciados de mesquinhez e banalidades. Não que o conhecessem, não , ninguém o conhecia. Também não se dava a conhecer, nem queria, nunca saía de casa, nunca, esta era uma das raras ocasiões em que era obrigado a sair de casa, tinha de ir renovar o Bilhete de Identidade, burocracias que ele dispensava bem, se o pudesse. Não saía de casa há dois anos e meio, e nada havia mudado naquela cidade cinzenta e monótona.
Ouviu o barulho do metro a chegar. E o aglomerado de pessoas a aproximar-se, afastou-se um pouco mais, ficando numa zona sombria da estação. Não gostava de se misturar no magote de pessoas, e o seu coração batia mais depressa perante a perspectiva de uma viagem de meia hora até ao local pretendido, e depois meia hora de novo para trás. Que suplício!
Foi o último a entrar, evitando qualquer tipo de contacto, com os outros, nem olhava as pessoas directamente. Sempre de cabeça baixa entrou no metro que se encontrava abafado, infestado de micróbios e bactérias das outras pessoas, uma amalgama de agentes infecciosos todos reunidos no mesmo lugar. Não se sentava nunca, ainda se houvesse lugar, como naquele caso não havia. Mas sentar-se onde já se sentaram milhares de pessoas fazia-lhe confusão! Portanto ficou de pé, agarrando-se aos bancos, sempre com luvas, evidentemente. Aí a porta fechou e começou a invadi-lo uma sensação de mal-estar, de sufoco, mas que conteve com muito autocontrolo .
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5 minutos
Ainda não percorreram quase nada do trajecto e já estão a parar novamente, mais pessoas entram, outras saem, uma confusão de pessoas a acotovelar-se e a sofrer empurrões deste e daquele outro. E Cristiano , lá no meio, branco de não apanhar sol, com umas olheiras negras profundas, metido dentro de uma camisola preta, e umas calças de ganga que lhe ficavam a dançar, completado com um casaco comprido por cima, umas luvas e um cachecol, todos de cor escura e lúgubre, que lhe davam um aspecto estranho, no entanto não deixava de ser atraente. Cabelos luzidios pretos, olhos verdes claros e brilhantes, mãos finas e os seus vinte e seis anos à flor da pele faziam com que muitas mulheres se sentissem tentadas a olhá-lo demoradamente, ou mais que uma vez.
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10 minutos
Nada disso o interessava. Não mantinha relações com ninguém, apenas tinha os avós que já eram idosos e que viviam no interior do país. Perdera os pais há uns seis anos, e desde então tem vivido sempre sozinho no seu apartamento pouco mobilado, sem fotos, sem imperfeições que mostrassem a sua vida, nenhum arranhão na madeira causado por algum salto alto de uma mulher que poderia ser a sua, nenhum objecto partido por um miúdo que poderia ser um vizinho, sobrinho, filho até! Filhos, ha !, nada mais afastado dos seus pensamentos...
Um casal de adolescentes namorava num dos bancos, trocando beijos afectuosos, dando as mãos e partilhando sorrisos e confidências. Cristiano observou-os. Observava as outras pessoas quando tinha a certeza que nenhuma delas o observava, fazia-o sentir invisível, como gostava, uma espécie de divindade que podia observar todos e saber os seus segredos, os seus vícios... Passava despercebida a maior parte dos detalhes fundamentais às pessoas comuns, que usavam o metro todos os dias e que já estavam habituadas a não ver, embora pensassem que vissem.
Como era incrível encontrar pessoas diferentes num metro, por momentos alheadas da sua vida. Como se aquele metro fosse uma membrana protectora do que existia lá fora... Mentiras, desilusões, amargura, pessoas que ansiavam por sugar toda a felicidade que tinham, ainda que essa felicidade fosse efémera.
À sua frente encontrava-se uma senhora de, aproximadamente cinquenta anos, roliça, de cabelo pintado de castanho escuro, com olhos redondos e mortiços. Perguntou-se sobre o que a atormentava, que medos, que segredos escondia, o que fazia com que roesse as unhas até ao sabugo, e descuidasse da sua imagem, visto que as raízes apareciam brancas já. Os sapatos desamarrados, a alheação a tudo...
Enfim, já se começava a impacientar com a lentidão do Tempo.
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15 minutos
Metade da viagem, e o metro cheio. O suor escorria-lhe pela cara lívida, embora o calor nem fosse tanto. Estava meio de um monte de pessoas, que falavam demasiado alto, gesticulavam expressivamente, e que não paravam de se mexer. Isso enervava-o. O que o enervava também era os solavancos do metro a arrancar e a parar, o que fazia com que os passageiros ao seu lado, caíssem por cima dele constantemente. Tentava afastar-se, mas não o conseguia fazer a tempo. Tocavam-lhe. Magoavam-no. Punham-lhe os pés por cima. Não suportava as suas caras de simpáticos, sempre murmurando um "Desculpe!", ou "Sabe como é, ir em pé...", os sorrisos afectados, tudo parecia fazer chacota dele.
Olhou para o relógio mais uma vez.
Um cheiro nauseabundo enche o ar, que se torna pestilento e doentio. Alguém vomitou. Provavelmente uma criança, de uniforme azul, que encontrou na segunda paragem, vinha com ar bastante adoentado, penso ele.
Após algum tempo, não conseguiu pensar em mais nada, apenas aquele cheiro pestilento e nauseabundo, que lhe toldava a mente, atenuava todos os outros sentidos, só conseguia lembrar-se do dia em que vomitou num autocarro, andava no sexto ano. Nem sabia como se tinha lembrado de tal facto, já havia passado tanto tempo. Já nem se reconhecia como aquele rapazinho pequeno e franzino, que usava óculos redondos, e que falava com todos, embora não tivesse muitos amigos. No entanto, o cheiro forte voltou a inundar a sua mente, e essa lembrança desvaneceu. Agarrou-se com mais força.
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25 minutos
Reparou num rapazito franzino que se encontrava sentado uns bancos à frente, ao lado da mãe. Tinha estado parado a viagem toda, pelo menos assim parecia, pois só lhe conseguia ver a cabeça pequena. Então o rapazinho olha-o de forma estranha, inusitada com curiosidade, numa expressão que lhe devia ser intrínseca , infantil e ao mesmo tempo madura, e um pouco acusativo.
Ficou um pouco espantado, mas depois reparou melhor nas feições do menino que deveria ter uns nove anos, e não lhe eram estranhas. E isso sim, era algo quase irreal, uma vez que achava as pessoas todas iguais... Mais que curioso, sentiu-se perturbado. Afinal, não era só ele que via o que os outros não viam.
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30 minutos
A porta abriu-se e saiu num misto de alívio e repreensão. Já cá fora, pôde respirar um pouco, não ar puro, mas sim uma combinação de ar e fumo proveniente das mais diversas fontes. E então lembrou-se! Já sabia quem poderia ser...
Enfiou as mãos na algibeira, e evitando as outras pessoas lá se dirigiu ao seu destino.
Imagem retirada de Deviantart
Como esta viagem, existem mais longas, sem grandes percalços e onde nem damos pelo tempo passar. Viagens que nos modificam e transformam. Já há três meses que viajo contigo, num ritmo suave e tenho ganho alguma bagagem, essencial, e tenho adorado. Espero continuar a viajar...