Does it make any sense?! No? So, welcome.
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Out 08
publicado por Andi, às 22:09link do post | comentar

O vizinho do apartamento da frente preparava-se para sair. Casaco castanho, calças pretas, camisola preta também, um guarda-chuva preto na mão, e um ar de cansaço estampado no seu rosto velho e enrugado. Barba por fazer de há uns dias. Cabelo desgrenhado. Estava mais débil do que há uns dias. Tinha de saber porquê. Ainda há cinco semanas e meia, às sete horas da noite, havia chegado uma ambulância a sua casa. Lembrava-se bem desse episódio. Piada dizer isto. Lembrar-se bem. Não havia nada que ele não quisesse lembrar e não o conseguir. Enfim, isto não se tratava dele. Tratava-se do vizinho da frente. António Morais, de nome, 57 anos, viúvo e vive apenas com um gato peludo e curioso, inclusive já tinha ido ao seu apartamento algumas vezes. Três, para ser preciso. Duas vezes no mês de Janeiro de há dois anos atrás e uma outra vez em Setembro do último ano. Não tinha nada contra animais, mas não estava habituado a ter companhia (pelo menos tão próxima), portanto esperava que o gato não voltasse ao seu apartamento tão rapidamente.

 

Voltando ao seu vizinho, o Sr. António, que agora fechava a porta antiga do seu prédio, cicatrizada por muitos defeitos imputados ao longo dos anos, e já um pouco torta, aliás em tudo semelhante a ele, tinha um ar diferente. Não sabia dizer porquê, e aliás algo deveria ser diferente dos outros dias, porque ele nunca saía de casa a esta hora. Estaria a ver o canal 7 da televisão até pelo menos às dez horas da noite. E ainda eram oito. Isso deixou-o pensativo. Lentamente, pé ante pé, lá se dirigiu o seu vizinho, rua abaixo até um destino desconhecido, pelo menos para ele, que observava. Agora já só conseguia vislumbrar uma silhueta, causada pelas luzes estranhas da rua, e que adulteravam o seu vizinho, diria que seria outra pessoa, talvez fosse. Talvez as pessoas se transformassem às escuras, confirmando aquelas histórias do papão que todos ouvimos quando somos novos. Provavelmente até mudam. Todos mudamos. A vida é uma inteira mudança, nada dura pouco nem muito para que possa ser absorvido de maneira correcta. A não ser pela memória. Ela é a única que pode comprovar a nossa existência. Não a nossa existência como seres humanos, tal como os outros animais. Mas a outra existência.A existência que todos achamos que temos, mas que poucos têm, a existência que importa realmente. Qual é ela? Não sabe. Ainda. Espera vir a saber.

 

 

Nesta altura já nem vê o vizinho apenas a rua vazia de noite ou de qualquer outra coisa humanamente visível. Tem piada, quando vivia na sua aldeia, as ruas continham algo, algo substancial, palpável, como se outro ser estivesse sempre lá, não deixando as pessoas sozinhas nunca. Contudo na aldeia era tudo um pouco monótono. Precisava de ritmo, movimento. Uma espiral de sensações e experiências que o arrancasse do torpor que vivia. Acabou por conseguir, em parte. Mas ainda buscava algo.

 

Um cheiro a café invadiu-o. Forte. Devia vir do apartamento superior, de vez em quando eles faziam café. Gostava do cheiro, aspirava-o lentamente, inspirava e expirava devagar, enquanto o cheiro persistisse. Mas não gostava de beber, sentia-se desiludido perante aquele sabor, quando comparado ao olfacto. Não lhe sabia ao mesmo, sentia-se sempre ludibriado. Não gostava disso.

 

Acabou por passar o cheiro. Então tomou o chá que tinha à sua berma no parapeito da janela. Sim estava sentado na janela, com as pernas balançando no lado exterior. Mas morava no rés-do-chão, não haveria problema se caísse, mesmo que quisesse que isso acontecesse. Enfim bebeu o chá golo, por golo. Esperando algo que acontecesse ali, que lhe despertasse os sentidos, arrepiasse os cabelos, abrisse a boca de espanto, ou trincar a língua de anseio, qualquer coisa. Esperava, observando.

 

 

sinto-me: doente (mesmo)

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