Does it make any sense?! No? So, welcome.
04
Mar 10
publicado por Andi, às 15:12link do post | comentar

CHOICE by ~PRETTYLINES on deviantART

 

 

 

Engraçado como as quase infinitas variáveis se apresentam perante nós como escolha que podemos tomar, como decisões que apenas dependem de nós, dos nossos caprichos, apenas nós, eu, o indivíduo sabe. Temos esse poder, pelo menos gostamos de pensar que sim.

 

A análise analítica das várias opções leva-nos a uma solução que muitas vezes não desejamos. Evadimo-nos com desculpas, subterfúgios e dissimulações. A escolha pode ser complicada. Podemos evitar ter esse tipo de compromisso, escolher é nossa culpa, pesa sobre nós.

 

*

Rita ia todos os dias ao mercado, comprar fruta fresca para a família. Daquela fruta que reluz e é gula em toda a sua forma, que apetece trincar só para saber como é. Frutas com muitas cores, muitas frutas. Era sua responsabilidade escolher a melhor fruta para os seus filhos e família. Vestia a sua roupa preparada por si no dia anterior, que jazia sobre uma cadeira simples de madeira, no canto do quarto. Vestia-se lentamente, com parcimónia, era um ritual matinal. Esse ritual incluía passar água pelo rosto, sem olhar ao espelho, pentear o cabelo, arrumar o quarto, e abrir a janela do mesmo, para que pudesse arejar. Era a primeira a levantar, preparava o pequeno-almoço da família. Papas de aveia era geralmente o que se comia. Depois de todos comerem, era a sua vez de comer, sempre com calma, mas uma calma energética, sabia que o dia seria longo. Arrumava a cozinha e saía para o mercado, ainda de manhã.

 

 

Sabia quais os melhores vendedores, sabia identificar a fruta que já estaria há dias nos sacos de serapilheira, aquelas que teriam hóspedes a alimentarem-se dela própria, destruindo-se, as maçãs farinhentas, as laranjas insípidas... Tocava, via e cheirava. Levava sempre o mesmo dinheiro, numa carteira bege, feita por si. Quase nem precisava regatear os preços, tal como conhecia os vendedores, estes conheciam-na. Era uma relação cúmplice de negócio, olhares e gestos, eram os intermediários na negociação.

 

Percorreu os corredores estreitos entre as bancadas não só de fruta e vegetais, bem como de flores, tapeçarias, especiarias, era possível encontrar muita variedade de produtos no mercado, mesmo produtos que não fossem comuns de um mercado. Havia um agradável aroma no ar, não conseguia saber de onde vinha. Vinha de todas as bancadas e envolvia-se em si, vinha de si também. Encontrou um novo vendedor no mercado, e foi ver que frutas teria.

 

Tinha frutas estranhas como abacates, mangas, papaias, frutas extravagantes, na sua opinião. Nunca tinha experimentado ou comprado, só comprava produtos locais, como tal não sabia analisar, como era seu costume, aquelas frutas. Mas passou sempre em frente.

 

Teria continuado se o vendedor não a tivesse chamado. Ele expôs-lhe as frutas que tinha arrumadas detrás na bancada, frutas que eram praticamente o mesmo preço que as locais. Rita rejeitou. O vendedor insiste, dá-lhe a cheirar as frutas, até parte uma e dá-lhe a provar. Nos dias seguintes recriminou-se por ter provado, esse instante em que as nossas percepções mudam, e a escolha já não pode ser feita correctamente. Fechou os olhos quando provou e gostou, teria comprado mesmo ali, se não fosse ela, se Rita não tivesse essa obrigação perante a família de lhe comprar fruta fresca que gostassem e que não fosse cara. Contudo aquela não era, porquê rejeitar? Porquê não escolher aquela? Poderia fazê-lo, mas não o fez.

 

Chegou a casa com um saco do mercado, como habitual. Os filhos queixaram-se que algumas frutas tinham bicho, mas esse pequeno erro passou despercebido.

 

Nos dias seguintes que lá passou, teria que passar pela bancada do novo mercador, para comprar a fruta, aquele cheiro impregnava-lhe a roupa e toldava-lhe o pensamento. "Quero comprar", pensava ela, mas punha a mão no bolso e apertava a carteira bege, que lhe relembrava as suas obrigações. E passava em frente. Por vezes, tentava olhar para a outro lado do mercado, mas não havia nada que lhe chamasse a atenção. Ainda para mais, o mercador chamava-a, anunciava as frutas.

 

 

Passou a sonhar com as frutas, comia até rebentar das frutas, num deleite extasiante, ficava toda suja com o sumo doce, lambia os dedos e acordava em sobressalto. Estou parva, pensou ela, mas os dias foram-se seguindo e a escolha cada vez mais se debatia, estas frutas ou as outras, estas ou as outras, estas as outras, as outras...

 

Passadas algumas semanas quando não dormia quase nada, dirigiu-se ao mercado. Nesse dia o mercador novo tinha ainda mais frutas em exposição e ainda mais coloridas e sumarentas, para mal dos seus pecados, ele estava a oferecer algumas às pessoas, para poderem provar. Salivava, também queria. Mas não se conseguia mover, contemplava as frutas, na sua exuberância, e a escolha desapareceu. Estava presa naquele limbo de indecisão, já não tinha escolha. Estava apenas hipnotizada por uma mistura de cores e cheiros tropicais, não encontrava já a sua carteira bege que lhe permitisse voltar à escolha. Tinha-se perdido, não conseguia sair daquele lugar.

 

 

Os dias passaram, os anos, essas divisões de tempo que não interessam a quem está perdido, a quem não tem escolha. Rita permaneceu sempre, voltada para a bancada, com o olhar extasiado para o vazio, pois tempos depois, o mercado foi mudado de lugar. A indecisão deu espaço ao nada.

música: L'autre valse D'amelie - Yann Tiersen

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