Does it make any sense?! No? So, welcome.
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Jun 08
publicado por Andi, às 00:04link do post | comentar

Estava quase a conseguir. Os dedos, esguios, finos e alvos,já se moviam com desenvoltura sobre as teclas do piano pardacento, todos faziam mira ao piano preto e elegante e à música que dele brotava como se fosse uma fonte, e ela a fizesse nascer e renascer. Podia sentir todos os olhares, cravados na sua nuca, ou nas suas mãos, ou em si. Estava a ser invadida. Mas tinha de continuar, o mestre assim o aconselhara, a mãe assim o mandara, e o pai, nada dissera, mas o seu olhar severo e rígido foi o menos indulgente de todos, quase ditatorial aquela expressão. Engraçado, como a mãe não parava de palrar durante um segundo, sobre os modos a ter durante a actuação, que aquela seria a sua prova, que iria mostrar a todos que sabia tocar piano como ninguém, que até, porventura, algum rapaz de boas famílias a achasse digna de ser a sua esposa. Estava em jogo a sua vida, e o futuro. Era como se todo o destino da Humanidade dependesse da sua actuação no anfiteatro mais pomposo e rococó do país, que a enjoava profundamente com as suas florinhas a cobrirem tudo e todos, até podia ver no lugar das caras das pessoas essas flores sem graça nem cheiro.

 

 

Mas lá estava ela, a tocar a peça da sua autoria, simples, mas com toques inovadores, sublime e calma, como uma canção de embalar. Tal como era esperado duma dama da sua classe.O espartilho magoava-a quando se inclinava para poder tocar, apertava-a, esmagava-a. Como era estúpido aquele trapo que a limitava. Simultaneamente, enquanto estes pensamentos percorriam a sua mente velozes, ela ostentava um sorriso, ou pelo menos tentava, ao público, enquanto tocava.

 

 

Lá na plateia conseguia perscrutar os rostos àvidos do mestre e da mãe, e o sempre rosto sério do pai. Ainda não tinha chegado a meio, mas sentia um torpor a percorrer-lhe o corpo. Estava farta daquele lugar, daquelas pessoas sorrisos hipócritas, abanando ostensivamente leques enramados, com mais flores!, e passando a mão sapuda e gorda à frente da boca para bisbilhotar com o vizinho do lado.

 

 

Viu passar uma mulher nos bastidores. Era vulgar. Corpo trigueiro, cabelos negros como azeviche, roupa bastante simples e modesta composta por uma saia e uma blusa verdes, e nada de espartilhos. Levava uma cesta de maçãs vermelhas, luzídias e, aparentemente, deliciosas nos braços. Devia ser uma empregada de um senhor rico, velho, com a pele encarquilhada, que provavelmente teria de pagar uma boa soma de dinheiro para poder ter uma mulher ao seu lado na cama.  Que visão mais estranha, aquela mulher ali, a passar na parte lateral dos bastidores, onde só ela a podia ver.

 

 

Invejou-a. Por não usar espartilho, pelo seu corpo solto, e natural envolto nos tecidos verdes já um pouco gastos, pelo seu cabelo enorme negro, pelas maçãs que transportava, pelos pés confortavelmente calços numas sandálias castanhas.

 

 

Invejou-a. Ela que era bela, tinha a pele branca e alva, os cabelos castanhos da cor das folhas perenes de Outono, e os olhos da mesma cor. Ela que tocava num anfiteatro. Num dos mais importantes. Ela que sabia tocar piano, e a mulher, provavelmente, o seu melhor ofício seria fazer um belo queijo de vaca, pelo que ia tirar-lhe o leite pela manhã, quando as gotas de orvalho pendem nas plantas verdejantes. 

 

Invejou-a. E depois? Gostaria de não ter mais preocupação nenhuma que levar um cesto de maçãs escarlates nas mãos, e fazer queijos.

 

 

Aproximava-se uma parte crucial na peça, era a mais difícil. Errou uma nota, mas ninguém para além do seu mestre notou o pequeno deslize. Conseguiu ver a sua expressão aterrorizada e desaprovadora. Um misto de medo e repreensão bailava nos seus olhos, como que a ordenar-lhe que tocasse tudo bem.

 

 

 

Continuou a tocar bem, só que com mais intensidade. O olhar mantinha-se. E mais alguns se juntaram, as pessoas começaram a agitar-se pela demasiada importância que a música estava a ganhar. Afinal, estavam ali só para se divertir um pouco. As suas mãos percorriam freneticamente o teclado, obtendo notas ao acaso, e um horrível som, cada vez mais intenso. Sentiu que fazia música, como nunca antes o tinha feito. Soltou uma gargalhada descomunal, que ecoou por todo o anfiteatro, e ressaltou nas flores foleiras presas nas paredes, nos vestidos, até nos chapéus, em tudo.

 

 

Feito isto, levantou-se, fez uma vénia, e saiu. Antes deu uma mirada rápida pelo público, estavam todos pasmos, a boca aberta de indignação ou seria de espanto? Não interessava, tinha de sair dali. Queria encontrar a mulher. Queria saber como era ser ela. Mesmo que depois descobrisse que afinal a prostituta do velho impotente era ela, ou mesmo que nada passara de uma ilusão provocada pelo cérebro sem oxigénio, por estrangulação do espartilho. Iria tentá-lo. E foi.

 

A mãe e o mestre, em conjunto com todos ficaram consternados com tal saída. Foram procurá-la. O pai permaneceu impavidamente sentado.

 


E bem, já não escriva assim há uns diazitos.Tenho andado ocupada, a estudar... E fez-me bem esta  pausa, já não me dava tanto prazer escrever há algum tempo. Se o texto está diferente do normal, é resultado das mortes sucessivas dos meus neurónios.

sinto-me: dont care
música: Shiver - Coldplay

Olá menina.
Está super bem escrito o texto, gostei bastante. Ainda para mais tendo em conta o pouquíssimo tempo em que o escreveste.
Gostei da ideia da 'gaja' começar a elouquecer e tocar à eskafiador como forma de protesto. Maravilhoso, inspirador!
Vá, fica bem.
Bjs***********
O monarca tibetano a 12 de Junho de 2008 às 01:33

O meu blog, está de facto, bem frequentado... O monarca tibetano... wtf? Lol. Eu sabia que ias gostar dessa parte, não foi por isso que a escrevi assim, mas simplesmente porque me apeteceu. E não, não foi pouquissímo tempo, ainda tive algum.
És tão exagerado!
Beijinhos******
Andi a 12 de Junho de 2008 às 15:59

Ora cá me encontro de novo, e ainda tenho de por em dia os posts todos que colocaste desde a minha última visita.
Primeiro, e porque fica sempre bem, como tens passado? Espero que seja bem.
Este post, embora não tenha lido ainda o inicio destes "fragmentos", achei fenomenal. A forma como descreves o anfiteatro, a forma como ela toca, os pensamentos que lhe ocorrem quando ela toca. Muito bom. Os meus parabéns.
Vou ler os "fragmentos" anteriores e, espero, os próximos.
Até um próximo post.
Décio Fernandes a 16 de Junho de 2008 às 11:25

Olá. Sim tenho andado um pouco ocupada, mas bem. E tu?
Os fragmentos, são isso mesmo, fragmentos, não têm relação entre si, são apenas pedaços de... outras coisas.
Obrigado pelo elogio
Beijinhos**
Andi a 16 de Junho de 2008 às 15:26

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