Olhou-se ao espelho e sorriu, pelo menos tentou. Não era natural nela, não sabia qual esse sentido perverso que fazia as pessoas de antigamente abrir as suas janelas para as entranhas de forma tão pessoal e profundamente constrangedora, não falava só na boca, mas também nos olhos nos ouvidos, nos gestos que todo o riso ou sorriso genuíno incluíam.
Tentou outra vez, com mais força, e mais vontade, e outra… Não conseguiu. Era um mistério, e ninguém queria solucioná-lo, todos queriam ignorá-lo como ignoravam tudo e todos, como ignoravam as ignóbeis atrocidades que se cometiam diariamente, a cada hora, cada segundo, cada estilhaço de vida como se de uma garrafa de vinho tinto, daqueles que custavam meia bagatela, mas que sustentavam o vício a muitos, partida se tratasse… Sim, era redundante. A falta de sentidos provoca a redundância, acabámos sempre por voltar ao ponto de inicio, tal qual moscas atordoadas por uma pancada violenta de um papel de jornal grátis (quero ver as vossas caras de desprezo por estes jornais, em que se recebe informação sem pagar, contrariando todas as leis do Universo, as leis Divinas, que tudo tem de ser pago, e quanto mais exorbitante o valor, melhor será tudo… [e com tudo ela quer dizer tudo ou nada, a redundância mais uma vez, queridos leitores]), jornal esse que já andou em mãos repletas de bactérias, fungos, microrganismos, uma parafernália de seres microscópios, representados sempre nos livros de ciências por cores vivas e brilhantes, como se o mundo em tamanho pequeno, daqueles que se consegue observar totalmente com a objectiva de ampliação 100, fosse assim, fosse mais vivo, mais translúcido, mais brilhante de cores que cobriam todo o espectro da luz; mãos limpas, apenas em termos microscópicos, porque se encontravam repletas de algo imundo, mas incorporável, achava ela que era seriedade, a seriedade mudava as pessoas, faziam-nas insensíveis, indefiníveis, como nada, e ainda haviam as mãos completamente esterilizadas dentro de umas luvas impermeáveis, de uma pessoa também ela impermeável, aliás não era uma pessoa, mas um impermeável por si mesmo…
A falta de sentidos afectava-a si. [Não pensava sequer em sentimentos, isso não, sentidos apenas, algo que estimule o nosso corpo, algo, alguém, neste tempo ou no outro, neste espaço tridimensional ou no irreal, apenas algo] Tinha estudado grandes poetas que sentiam essa necessidade de mais sentidos, de sentir tudo e todos ao mesmo tempo, ou apenas, de aspirar aromas indeléveis e poder contemplá-los no vazio de um horizonte verde numa hora morta da tarde, quando o sol se esforça pela última vez para aquecer algo que não pode ser aquecido, nem por convecção nem condução. Isso não existia, invenções, como tudo o resto. Irónico como tudo o que buscava ou aspirava era considerado irreal, e tudo o que lhe apresentavam como real ela recusava. Irónico.
Irónico. Será que a ironia também a podia fazer sorrir? Ou poderia também experimentar alguma droga existente no interminável mercado?! Eram tudo opções a considerar, iria continuar a sua busca, baseada na curiosidade. Outro factor desconhecido. Aliás só o conhecido importa saber, supostamente.
O peso de todo aquele pensamento, a eterna batalha entre o que nos dizem e achámos que devemos fazer pesava-lhe sobre os dedos, e parou de escrever.
[O texto poderia acabar aqui, mas ela não sou eu, não quero ser assim tão narcisista que tudo o que escreva seja como eu a escrever, simplesmente não quero. Contudo isto não quer dizer que não acontece. Doces ironias, Batalhas campais e pesos gravitacionais de grande valor… Pesam não só sobre ela, não é assim tão diferente.
Parou de escrever e deitou-se. O trabalho acumulava-se na secretária, e por trás da pilha de papéis amarelados conseguiu ver os escritos que tinha feito sobre o sorriso, o riso, a genuidade, palavras inexistentes para o mundo, mas não para ela. Tenho de comprar uma máquina de cortar papel [pensou ela]. Amanhã faço isso.]