Completamente encharcado, Pedro chegou a arrastar-se à Instituição. A tiritar, e um pouco arroxeado, pois a água naquela altura do ano ficava bastante fria e desagradável, relembrou o seu encontro,atribulado, diga-se, com Fantasia. Não lhe sabia o nome, tão pouco a história, os gostos, os defeitos, as qualidades, as pequenas manias, os indeléveis tiques que a marcam, entre inúmeras coisas, como única e insubstítuivel. Não sabia por enquanto, mas haveria de saber. A sua curiosiade inata o impelia a isso, a perceber aquela rapariga que apenas por um búzio patético o atacou. Que parecia tão desligada de tudo e de todos.
Assim apareceu na sala comum, molhado, cansado e pensativo. Arminda e Alberto, que ainda continuavam a falar em surdina, e com um ar cúmplice, todavia não uma cumplicidade expressada verbalmente,que seja pública, era uma espécie de segredo só deles, viram-no entrar em tais condições e atenderam-no imediatamente. Conscientes do que havia acontecido, ambos, Arminda e Alberto se mostraram bastante receosos e apreensivos quanto ao sucedido. Pedro nada lhes contara, dissera apenas que tinha ido passear ao porto, e havia escorregado e caído à água, contudo essa história não convenceu nenhum dos responsáveis.
Não lhe tinha ocorrido nada melhor para dizer, mas não podia simplesmente denunciá-la, seria demasiado desonesto da sua parte, pois, no final de contas, tinha sido ele a quebrar as ordens dadas, se bem que na altura desconhecia que haveria uma reacção tão intempestuosa.
Após confortarem e certificarem que Pedro estava bem, decidiram ir novamente para a sala conversar acerca do sucedido. Alberto encontrava-se mesmo muito zangado. Pois, afinal, era ele que estava responsável por Pedro, perante a lei, era ele o tutor legal dele. E, visto isso, tinha obrigações e deveres. A sua finalidade, como funcionário governamental era garantir a segurança de Pedro e também um bom nível de vida, que ele não tinha com a sua família. Sentia-se extremamente responsável e aquela rapariga atrevida já estava a passar das marcas!
-Ela não tem culpa, é assim mesmo, tens que compreender que ela nasceu atrasada, coitadita!
Dizia Arminda, que acima de tudo queria salvaguardar a dignidade e respeito da Instituição, e que interiormente arquitectava uma forma de fazer Fantasia arrepender-se dos seus actos e pelo trabalho que lhe dava.
- É indiferente, os responsáveis aqui deviam ser isso mesmo. Deviam olhar pelas pessoas que aqui estão! Não sei se será boa ideia deixar aqui o Pedro. Uma pessoa perfeitamente normal como ele, aliás, um rapaz extremamente educado e inteligente, duvido que a convivência com essa rapariga lhe vá fazer bem. Ainda por cima rapariga! Deviam ter mais controlo sobre ela. Completamente inadmissivel esta situação. E, principalmente, não deviam deixá-la abandonar a Instituição sem a supervisão de ninguém, é, honestamente, um atentado à segurança das pessoas que perto daqui passam ou vivem.
Volveu por sua vez Alberto, já sentindo uma vaga de calor a corar-lhe a face só de pensar que aquela simples e insignificante rapariga havia desafiado todas as regras e atacado o seu protegido sem razão nenhuma. Aliás, mesmo que houvesse razões para isso, não o poderia fazer. Afinal de contas era uma rapariga, uma mulher!!! Não parava de pensar nisso, incessantemente essa ideia ocupava-lhe a mente, toldava-lhe o raciocínio... Aquilo tudo parecia-lhe muito surreal.
- Tenho a certeza que houve uma razão perfeitamente aceitável para o sucedido, mas em qualquer caso, vou falar muito seriamente com Fantasia, tentar fazer ela perceber que o que fez é mesmo muito errado, e se tal for requerido,será castigada.
Arminda conseguiu acalmar Alberto com tais palavras, não obstante ele quis certificar-se de que aquela pirralha iria aprender o seu lugar! Apesar de ser um homem extremamente calmo, havia certas situações, irregularidades como esta que o enervavam profundamente.
- Certifica-te então disso.
Atalhou o homem.
Num dos quartos, Pedro pensava numa forma de devolver o búzio e de se desculpar pelotão evidente e, aparentemente, tão grave erro que cometeu ao ir ao quarto dela e tirar algo que não lhe pertencia. Reflectiu, da mesma forma, de um meio que o pudesse aproximar de semelhante ser, de tão singular que lhe apareceu.
Num timing quase perfeito, Fantasia apareceu na sala comum e deparou-se com os olhos inquisitivos de Arminda e dos, cada vez mais, vazios e mortiços olhos de Alberto...