Does it make any sense?! No? So, welcome.
25
Set 07
publicado por Andi, às 18:12link do post | comentar | ver comentários (6)

Atravessou os corredores tão bem conhecidos como todos os seus quadros. Conhecia infimamente todos os pormenores das suas pinturas, a textura, as cores, a sintonia ou a falta dela... Quando era obrigada a ficar na Instituição passava muito tempo a olhar para eles,ou então a pintar, era assim que ocupava os seus dias.

 

Rapidamente se encontrou na sala comum, vazia àquela hora, pois a maioria devia-se encontrar ao ar livre, no jardim ou então nas redondezas, provavelmente a aproveitar o bom tempo. Havia apenas umas ou duas pessoas no canto da sala velha e com um ar deslavado, mas estavam tão embrenhadas no que estavam a fazer que nem reparam no estado que Fantasia se encontrava. Tinha os olhos a chispar de raiva e indignação. Por fim, os seu olhar parou, e reposou em Arminda. Estava sentada numa poltrona da dita sala, e ao seu lado encontrava-se o que Fantasia considerava o seu anjo da guarda, mas não passava de um funcionário governamental, de seu nome Alberto. Conversavam em tom baixo e restritivo, e pareciam amigos.

 

 

A indignação deu então lugar à surpresa e perplexidade no espírito de Fantasia. Avançou lentamente, no entanto resoluta a prestar contas com Arminda, ela deveria saber que não admitia tal invasão do seu espaço, dos seus objectos, de "si"... Não respeitava Arminda, tal como ela não a respeitava. A sua suposta responsável  inha muito mais do dobro da sua idade, não obstante tinha uma determinação e força de uma jovem, mas mesmo assim não achava um motivo válido para respeitá-la. Ainda mais agora, que ela tinha ultrapassado todos os limites.

 

Alberto e Arminda notaram na presença de Fantasia, e Arminda receou pelo pior, pois já conhecia suficientemente Fantasia, e nunca a tinha visto tão furiosa, tão ferozmente agressiva. Ninguém disse nada, não era necessário. Alberto, olhou consternado para aquela rapariga que parecia tirada de um manicómio, e que tinha uma parcela de animal selvagem, prestes a atacar caso invadissem o seu território. Pensou momentaneamente se fazia bem em entregar o Pedro ao cuidado destas pessoas. Arminda já lhe havia falado daquele caso problemático, que era aquela rapariga, mas nunca havia ligado muito. Afinal, Pedro era mais velho que ela dois anos e era rapaz, portanto só o facto de ser rapaz era mais que suficiente para aguentar bem com aquela pirralha, se bem que ela parecesse esperta...  

 

Arminda, por outro lado, queria evitar uma confusão. Já havia dito o quão problemática era Fantasia, mas não queria arranjar problemas com o Director Fernando, nem tão pouco ser a causa de má publicidade para a Instituição. Sabia já qual o motivo de irritação de Fantasia. Avisou-o para não o fazer, mas o raio do rapaz foi mais curioso pelo que estava a ver.

Então, tentou mostrar-se o mais calma possível, e antes que Fantasia pudesse sequer pensar em cometer algum dos seus ataques fulminantes, disse-lhe pausadamente " Foi o Pedro, o rapaz novo, que foi ao teu quarto. Pedi-lhe para te ir acordar porque já era tarde. Queria que fosses tomar o pequeno-almoço com todos."

 

Cada vez mais perplexa e confusa com aquela situação, o facto de o seu protector se dar com Arminda, dele a olhar como todos ou, se possível, ainda pior, de Arminda apesar da sua esperada simpatia fingida, parecer sincera. Eram demasiadas informações a processar, demasiadas coisas que não esperava. Ainda tentou perguntar onde estava esse tal de Pedro, mas como tinha bastantas dificuldades em falar, não se conseguiu fazer entender. Cada vez mais irritada, consigo mesma também, decidiu sair dali e procurar ela mesma esse rapazinho, já nem gostava muito dele, pois fora ele o responsável pela mudança do seu anjo da guarda. Todavia, se tiver sido ele a ir ao meu quarto, pensava Fantasia, como Arminda havia dito, passaria a gostar tanto dele como dela...

 

Procurou-o pela casa toda, e igualmente, pelo jardim da Instituição. Mas, só o foi encontrar sentado no cais. Aproximou-se apenas o necessário para que ele sentisse a sua presença. Nem o observara minimamente no dia anterior, mas só podia ser ele. Não era pescador, e sem ser os pescadores, mais ninguém ali ia, exceptuando poucas pessoas da Instituição.

 

"Fui ao teu quarto hoje, mas como estavas a dormir profundamente,decidi não acordar-te. Mas vi os teus quadros. São muito bonitos." disse Pedro, quando se virou e viu-a, especada à espera de uma justificação. Ainda acrescentou "Tirei um pequeno búzio que lá estava, como tinhas muitos, e como gostei dele, pensei que não faria mal.",  e mostrou o búzio, que mesmo a uma distância significativa, Fantasia reconheceu como sendo o búzio oferecido por José.

 

Agindo instintivamente,avançou na dirrecção de Pedro, e na tentativa delhe tirar o búzio, que ele não compreendeu, acabou por arranhá-lo na cara e nos braços. Não esperando um ataque daquela natureza, e ao tentar defender-se caiu à água. Fantasia, que ficou também ficou um pouco ferida, contudo isso não a importava, pois o que a estava a magoar era o facto de se ver tão invadida, sentia-se roubada de si mesma, não foi atrás de Pedro, pois, apesar de gostar tantou do mar, não sabia nadar. Pensou que haveria de recuperar o búzio mais tarde, de qualquer forma.

 

Ainda tentando refazer-se do susto, da imprevisibilidade daquilo tudo, Pedro ainda vislumbrou a sombra esbatida de Fantasia, a correr descalça na praia,em direcção à Instituição. Acima de tudo, não conseguia deixar de pensar no quão estranho era aquela situação, aquela rapariga...

 

sinto-me: a recuperar
música: The World is Black - Good Charlotte

17
Set 07
publicado por Andi, às 18:44link do post | comentar | ver comentários (6)

Acordou. Já devia ser tarde, o sol já penetrara no quarto havia muito, es brilhava agora intensamente. Pensou consigo mesma que seria um dia óptimo para ir dar um passeio a beira-mar. Contudo, estava com uma preguiça descomunal, nem lhe apetecia mover um músculo sequer.

 

Deitada na cama, por cima dos lençóis brancos, pois havia dormido daquela forma, Fantasia encontrava-se num estado de dormência, sabia estar desperta, não obstante sentia  um torpor em todo o seu corpo. Estava toda pintada, de várias cores, e mesmo assim não se importava. Tinha a pele ressequida pela tinta de pouca qualidade, tinha as mãos e os pés sujos, pois raramente usava sapatos. Achava-os esquisitos, demasiado protectores, incómodos. Gostava de se sentir em liberdade e de sentir o chão que pisava, mesmo que não fosse assim tão agradável.

 

 

Passado algum tempo decidiu que já era mais que hora de levantar, não iria ficar ali deitada, imóvel o dia todo, isso era desperdiçar o dia. Então, e sem mais delongas, saltou da sua humilde cama de um salto, e espreguiçou-se lentamente. Quando parou e olhou em volta, apoderou-se dela um rancor enorme... Haviam mexido na sua colecção de objectos, igualmente como nos seus quadros e tintas. Reparara, da mesma forma, que haviam muitas das suas coisas que não estavam no lugar, no seu devido lugar. Era como se tudo estivesse errado, a sua ordem havia sido perturbada, haviam entrado na sua esfera de intimidade de uma forma que ninguém havera entrado. Mais que constrangida, Fantasia sentiu-se furiosa, estava prestes a ultrapassar o limite da sua pacificidade...

sinto-me: ok
música: Fighting - Yellowcard

04
Set 07
publicado por Andi, às 21:25link do post | comentar | ver comentários (4)

Só no seu quarto, se é que poderia designar aquela divisão húmida e maltratada em que chovia dentro e que era abrigo também para pequenos animais como ratos, baratas, grilos, e outros, um quarto; parou e sentiu um grande alívio, se bem que sabia-o temporário. Ninguém a iria oportunar naqueles dias, não iria haver sinais de controlo, nem de prisão, nem de tristeza... Tudo estava a ir bem, bem demais, pensou ela. Nunca tinha havido um tempo em que guardara tanta esperança no seu íntimo, e simultaneamente, nunca havia tido tanto receio de perder aquilo que havia descoberto. O mar, o pescador, um pouco de liberdade, a sua pintura...

 

Não podia pensar nisso, não queria. Decidiu então afastar todos esses pensamentos da sua mente, resoluta, fechou os olhos e surgiu-lhe o desejo de pintar, de libertar o que sentia e o que pensava, mas não de uma forma intencional, não de uma forma distinta ou organizada. À sua forma, apenas. Abriu os olhos grandes e cintilantes e vislumbrou a tela vazia, inexpressiva e invadiu-a um turbilhão de sentimentos. Automaticamente, como sempre acontecia, pegou na caixa onde guardava as tintas, e nos seus pincéis e arrebatada pelo prazer que lhe dava pintar e de criar algo do nada, pintou grandes pinceladas de várias tonalidades, a maneira como ela fazia dava aos traços um textura estranha e irrepetível. Passado algum tempo neste frenesim de cores e pinceladas, Fantasia já estava completamente cheia de tinta, e então, acabou o quadro pintando com as próprias mãos.

 

 

Sabia que estava proibida de mexer nas tintas e em tudo o mais e de pintar, mas atreveu-se, e tinha uma leve certeza que Armanda nada lhe iria dizer ou fazer. E ao pensar nisso, recordou-se do que havia passado.

 

Frente a frente com Arminda, os dois olhos fixos nos dela, uma interminável luta de domínio e libertação, contudo este contacto visual não durou muito mais do que uns segundos, pois Arminda desviou o olhar para Ele. E, de seguida, Fantasia olhou também. Incrédula, olhou demoradamente para o indíviduo que ali se encontrava, alto, não sabia definir-lhe a idade, mas parecia-lhe bastante velho, os seus olhos era verdes e um tanto ou quanto superficiais. Não sabia quem Ele era, nunca o soubera, e honestamente não se interessava pela sua identidade. Apenas sabia que aquela pessoa, com quem nunca tinha trocado palavras ou impressões era uma espécie de anjo de guarda. Quando ele estava por perto, ninguém lhe ralhava, nem a obrigavam a nada. Sentia-se mais liberta que nunca.

 Presumia que fosse importante, pois se assim não fosse, o Director Fernando não estaria lá, todo aprumado no seu fato azul-escuro que utilizava em ocasiões especiais, e a sua gravata cor de laranja, e os sapatos impecavelmente limpos. Era esta a imagem que ela guardava desse estranho indivíduo que se designava senhor e dono daquela Instituição. Nas poucas ocasiões que estivera na sua presença sentia-se extremamente incómoda e desconfortável.

 

E foi aí que ele olhou para ela, o seu anjo da guarda inventado pelo seu imaginário. Fantasia não sentiu qualquer emoção ou sentimento emanando daqueles olhos, que se dizem o portal da alma. Eram mortiços, vazios e ocos.

Durante os segundos aguentou aquele olhar de avaliação e de inspecção, mas sentia-se invadida, sentia-se transparente perante ele. Começou a sufocar no meio de tantas pessoas e de tantos olhares, e daí correu até ao seu quarto.

 

Toda esfarrapada, suja e despenteada, e no entanto parecendo uma fera selvagem com os seus olhos verdes ameaçando perigosamente quem se pusesse à sua frente, lá percorreu o trajecto que tão bem sabia. Nem reparou no novo rapaz que estava na Instituição, trazido pelo que considerava ser o seu anjo, mas que não passava de um funcionário do governo.

sinto-me: um tanto ou quanto em baixo

03
Set 07
publicado por Andi, às 20:51link do post | comentar | ver comentários (4)

Respirou fundo, lentamente, como se quisesse preservar a vida toda que tinha dentro de si e resguardá-la num sítio tão longínquo e inatingivel que ninguém a pudesse alcançar. E como vida, ela entendia ser a sua liberdade, as suas memórias felizes,os seus desejos...
 
Passou pelo carreiro desgastado pelo tempo e pelas assombrações de tristeza e solidão que vagueavam por toda a Instituição, encontrava-se rodeado de ervas daninhas, que davam ao jardim um ar de abandono e consequente descuido. Ia devagar, medindo os seus passos, Arminda estava cada vez mais próxima, já conseguia ver nitidamente as suas feições, a cara cansada e o rosto marcado por rugas que tanto o tempo como a amargura provocavam. Mas mesmo perante esta imagem, no mínimo, perturbante, Fantasia avançou corajosamente.
 
Ao aproximar-se da porta de entrada não pode deixar de reparar que estava a acontecer algo, as pessoas encontravam-se agitadas e ouvia-se as vozes ansiosas da rua,o que era muito raro pois não eram permitidas tais liberdades. E a figura de Arminda,sempre à porta, rígida e estática, contudo Fantasia pareceu vislumbrar um sorriso a bailar-lhe nos lábios, se bem que um sorriso forçado e um tanto ou quanto hipócrita e fingido.

Retirado da Internet

sinto-me: mazinha por não avançar muito

26
Ago 07
publicado por Andi, às 00:37link do post | comentar | ver comentários (6)

O dia acabou por chegar ao fim, inexoravelmente. Terminou da mesma forma o trabalho, e o agradável passeio de Fantasia.

De volta a terra, Fantasia despediu-se e não prometeu voltar, pois não acreditava em promessas, até porque nem ela nunca fizera uma, nem lhe haviam feito alguma. Não se relacionava com as pessoas, tentava fugir delas, abstrair-se, não ouvir as suas vozes secas, monótonas, hipócritas e falsas.

Mas José conseguira alguma simpatia da parte dela, invés da apatia normal e rotineira que nutria pelas pessoas. Subitamente surgiu uma questão inevitável na sua mente "Para onde iria?". Por muito que José tenha sido compreensivo e simpático, não se iludia, sabia que ele não tinha como alojá-la, que tinha família para sustentar, via isso no seu olhar cansado, mas ao mesmo tempo prazeroso, do ofício da pesca. Ele também parara, pensativo no futuro que teria aquela rapariga doce e calada, queria poder fazer algo para poder ajudá-la. Mas que poderia ele fazer? Um simples pescador,sem estudos, sem lugar onde acolhê-la, sem recursos...

Decidiu então levá-la para a Instituição, sabia que ela vivia lá. Nunca a tinha visto na aldeia, e alguém tão especial como ela não devia passar desapercebida, se bem que, regularmente, pelas razões erradas. Mas, paciência, nem tudo é como desejámos, penou ele. Fantasia compreendeu as razões dele, e não pode deixar que ele não tinha outra opção...

Mas custava-lhe tanto voltar outra vez àquele suplício diário e inimterrupto que era a sua vida, ou a falta dela na Instituição. Arminda, solidão, prisão, todos aqueles que habitavam a Instituição e a olhavam com desprezo e arrogância, o próprio edifício que a asfixiava e não a deixava respirar...

Mas não tinha outra solução que não voltar para lá, por enquanto. Não suportava pensar que iria passar lá muito tempo. Iria arranjar uma forma de fuga, contudo não iria colocar o pobre pescador em apuros, não, a única pessoa que a tratou com gentileza, sabia ser simpática e retribuir a pessoas que fossem bondosas consigo.

Então, José apontou-lhe o caminho e Fantasia lá seguiu, cabisbaixa, mas simultaneamente e interiormente deliciada pelo dia que havia tido. Sabia o que a esperava, mas uma vez mais essa sensação de distanciamento a tudo o que a repugnava tornava-se evidente. Momentos como a viagem de barco, a companhia de José e outros mais que vivia perto do mar contribuiam para esse sentimento.

Quando olhou para trás, viu que, surpreendentemente, José estava no seu encalço e a levava à Instituição. Nada disseram. Seguiram o caminho sinuoso, de terra batida, e um tanto ou quanto estreito.

E finalmente chegaram ao portão da Instituição, velha e no entanto imponente. Fantasia avançou em direcção ao portão, e quando ia abri-lo, voltou-se para trás, e disse "Fantasia." para o pescador. Um aceno de cabeça como prova de aprovação em relação àquele agradecimento sincero. Entreolharam-se, os dois, e trocaram despedidas de amigos, com a esperança, e ao mesmo tempo, a certeza de que se encontrariam novamente. Ao contrário do que esperava, José não foi logo embora, tirou um búzio da algibeira gasta das calças simples e escuras. Sabia que ela ia gostar de algo que lhe lembrasse verdadeiramente o mar.

Pousou-lho na mão trémula e expectante, e fez-lhe sinal para o ouvido. Seguindo o conselho de José, ela levou o búzio ao ouvido e ouviu a voz do seu amigo, uma simples e doce melodia, ali dentro daquele objecto estranho,  fitou-o com curiosidade e deu-lhe várias voltas, mas acabou por guardá-lo no bolso, sunto do outro presente que havia recebido há poucos dias atrás, o seu objecto de metal estranho.

Retribui um sorriso sincero e rasgado ao pescador, e voltou-se para o jardim mal tratado da Instituição. E aí sim, se despediu de José.

Já podia ver Arminda, na porta, à espera.....

sinto-me: na expectativa...

12
Ago 07
publicado por Andi, às 14:44link do post | comentar | ver comentários (2)

Seriam aproximadamente 7 horas da madrugada, não sabia bem, estava desorientada, não conseguia orientar-se nem situar-se no tempo nem no espaço.

Correu um bom bocado, antes de chegar ao porto onde se encontravam pequenos barcos de pesca, saloios, rústicos, simples e humildes como os seus propietários.

Havia um pescador a preparar-se para partir para a labuta matinal, árdua, mas prazerosa, quando reparou nela, alta, com um ar traquinas e maroto, infantil, mas ao mesmo tempo havia uma réstia de mulher adulta e experenciada que deixava antever que ela era muito mais madura e vivida do que parecia. Pela sua roupa e pelo seu aspecto ensanguentado, o pescador presumiu que ela fosse da Instituição que ficava a alguns quilómetros da praia. Sim, só podia ser.

Fantasia, com os sentidos em sobressalto, tentando ver, ouvir, ou sentir a menor presença de pessoas ou de perigo, apercebeu-se que alguém a mirava com olhar curioso e incrédulo, sentia-se vigiada, mas não num aspecto maldoso ou pernicioso. Era um olhar de interrogação, de curiosidade, de quase compreensão pelo estado em que ela se encontrava. Então, contra tudo o que ela sentia e detestava nas pessoas decidiu aproximar-se do dito pescador, um pouco nervosa e pouco descontraida, mas a fome que sentia era maior, apertava-a, não a deixava pensar claramente, sentia a boca seca, o corpo torpe e fraco.

O pescador de seu nome, José, era um homem simples, de pouca cultura, de poucos estudos, nem sabia escrever o seu nome, mas percebia algo que nem os mais distintos doutorados percebem, uma linguagem escondida no olhar, nos gestos, uma espécie de código secreto que as pessoas têm... Pegou na sua sacola puída pelo tempo e pelo uso e tirou metade do seu almoço, e, imediatamente, estendeu-o no seu barco. Quando Fantasia se aproximou dele, ele não disse nada, apenas fez um gesto para o barco, ela percebeu pelos seus olhos, pelos seu modo de estar e de agir, que ele era uma pessoa inofensiva e pacífica, que apenas pretendia ajudar.

Saltou então para dentro do barco, cuidadosa, mas ainda com vigor, pois apesar de tudo era jovem e forte. Começou a comer ferozmente, tal era a fome que tinha. Quando acabou de comer, já refeita e saciada, e sentindo-se mais segura, é que reparou que o pesacdor não se tinha limitado a dar-lhe de comer, tinha-a levado no seu barco para a pesca também! De súbito, sentiu uma onda de pânico percorrer-lhe o corpo cansado, mas alerta, ficou com calor, e começou a respirar pesadamente. Nunca tinha andado de barco, nem tão pouco estado tão perto de tanto mar! Fechou os olhos e tentou não sentir as ondulações que se esbatiam contra o barco, que pareciam querer tragá-lo só de uma vez. José sentiu o seu medo, e parou de remar para que Fantasia não se assustasse mais, e esperou, esperou que ela tomasse coragem e abrisse os olhos, que reparasse na forma como o mar lhes dava as boas-vindas, este reflectia a luz ainda ténue do sol, e estava calmo...

Agarrou o seu búzio, o seu presente, que apesar de ser de metal, ela considerou ser uma espécie de búzios muito rara e especial, e abriu os olhos, lentamente. Sabia que o mar era seu amigo, mas não deixava de ter medo da sua imensidão, do seu poder e força. O que viu, fê-la esquecer o medo que sentira, a dor, o medo da ser prisioneira, fê-la esquecer que havia Instituição, de que Arminda estaria fula, nada... Não havia nada mais, apenas ela e o mar, e o céu límpido e claro, com o sol a despontar, o mar adquiria uma tonalidade esverdeada e permitia-lhe observar os animais que nele habitavam... Estava maravilhada, nunca pensou que o mar não tivesse fim, e olhou para trás e viu a costa, a praia, as casas, muito distantes, diminutas, insignificantes, sentiu-se dona de si, imponente, ela mesma! Pela primeira vez em algumas semanas falou espontaneamente, e disse apenas "Fantasia!"...

O pescador sorriu levemente de satisfação, já começava a gostar dela, da rapariga misteriosa, que parecia gostar de viver, de apreciar as coisas simples da vida, e decidiu continuar a remar. A rapariga abriu os olhos perante tal espectáculo; luxuriante, inebriante e excitante era aquele sentimento, que não conseguiu definir. Mas não se importou de deifinir, seja o que for, não sentia essa necessidade...O barco, apesar de pequeno, era conduzido velozmente pelas mãos experientes de José. Dividia o mar em dois, cortava as ondas em dois, parecia uma corrida entre o barco e o mar. Pôs a mão na água e sentiu. Sentiu o mar, veloz, fugidio, suave, e inatingível. Gostava daquela sensação, estava de mãos dadas com o mar, e eram amigos. Brincou com ele, acariciou-o e disse-lhe os seus desejos e segredos.

Continuou naquela brincadeira, naquele jogo de conhecimento mútuo, o resto do dia, enquanto José trabalhava, e sentiu-se bem, sentiu algo parecido com felicidade, mas muito para além disso. Sentiu-se livre...
música: Nothing in my way - Keane
sinto-me: fantasia...

11
Ago 07
publicado por Andi, às 02:49link do post | comentar | ver comentários (4)

Quando chedou a casa, exausta, mas contente, até se poderia dizer feliz!, deparou-se com a Arminda, a responsável pelos que viviam na Instituição. Os olhos de ambas encontraram-se, avaliando primitivamente os desejos e receios de cada uma, Arminda compreendeu que Fantasia estava radiante, como nunca antes tinha visto, e Fantasia, por sua vez, apercebeu-se que Arminda estava determinada em arrancar-lhe esse prazer, queria que ela Lhe obedecesse, e não fosse rebelde, que simplesmente fosse como todos os outros e não lhe causasse transtornos... Ambiguamente, sabia também, subconscientemente, que por mais que fizesse e tentasse não o conseguiria!

 

 

Arminda, carrancuda e amarga, nem tentou falar com Fantasia, pois não havia linguagem mais explícita do que a da linguagem do olhar... Com uma roupa cinzenta, desgastada, parecendo também Arminda cinzenta e desgastada, mostrou a Fantasia aquilo que ela já esperava e que todos na casa temiam, a velha bengala da fundadora da Instituição. Já deveria ter mais de meio século, mas continuava, como a Instituição, inquebrável, teimosa em fazer-se vingar, maliciosamente persistente, atormentando todos!

 

Fantasia, ciente do que lhe esperava nem se mexeu, nem tão pouco mostrou algum indício de medo, ou de arrependimento, porque na verdade não sentia nada disso! Sentiu o primeiro impacto com mais intensidade, mas agarrou instintivamente o pedaço de metal que encontrara na praia, o seu presente. Nos seguintes minutos pouco ou nada sentiu, não proferiu uma única palavra, nem mexeu um músculo. Também ela se mostrava impenetrável, impertubável e insensível ao que se passava naquele momento, tal como Arminda.

 

 

A velha decidiu parar, o que já sabia interiormente tornou-se súbitamente claro, não conseguiria "quebrar" Fantasia com aquele método. Fantasia não temia a dor física, temia sim outro tipo de dores. Foi então que teve uma ideia que lhe pareceu genial, infalível - fecharia Fantasia num quarto de onde não poderia ver o mar! Como tinha sido estúpida ao não ter pensado nisso antes!!!

 

*

 

 

Escuro, húmido, vazio, estranho.... Era assim que Fantasia sentia que era a divisão onde se encontrava. Já tinha perdido um pouco aquela sensação inebriante, entusiasta, estonteante que sentira, após ter deixado a praia. O escuro, o medo de não poder sair dali, de ser prisioneira sugava-lhe a amálgama de sentimentos efusivos que anteriormente sentira. O único sítio por onde escoava um fio fino, quase imperceptível de luz, era uma pequena janela no lado sul do quarto, e que apenas dava para vislumbrar os canteiros maltratados da casa. Quase entrou em pânico, pois a janela era bastante pequena, e para além do mais estava trancada, pelo exterior... Tentou parti-la com os punhos fechados, mas o vidro era bastante resistente, tinha que arranjar um objecto duro! Desesperada por sair dali, por respirar, por se sentir livre, pensou no mar... Como seri bom ser como o mar! Liberto, sem ter para onde ir, sentir o vento enquanto viaja, sem pressões, a vaguear conforme quisesse.... Nesse momento lembrou-se do seu magnífico presente, e de como ele lhe poderia ser útil naquela situação. Imediatamente, arremessou o dito presente contra a janela, e conseguiu fazer um orifício pequeno, mas suficiente para a sua mão. Rasgou um pouco da sua saia verde, de tecido grosseiro e já um pouco velha e tentou embrulhar a mão no pano, para evitar magoar-se, e meticulosamente, abriu o fecho, e, seguidamente a janela.

 

 

Manchada de sangue, pois magoou-se ao passar pela janela, e nos estilhaços de vidros; suja, esguedelhada, com o pedaço de metal na mão e com um olhar triunfante, poderia parecer uma louca. Estava delirante! Correu, sem pensar na Arminda, nas consequências que teriam a sua fuga, sem pensar em NADA!

sinto-me: liberta

06
Ago 07
publicado por Andi, às 14:18link do post | comentar | ver comentários (12)

Acordou às seis da madrugada, estremunhada, assustada, com medo... Sentiu algo muito estranho, que não devia estar ali, que não pertencia àquele lugar inóspito e deserto...

 

A casa, como todos lhe chamavam era uma habitação antiga, com altas portas e janelas, pintadas de branco, mas de branco já pouco tinham, pois o tempo havia desgastado a casa e a sua alma... À volta da casa havia um jardim, maltratado, com ervas rebeldes despontando onde havia espaço, e flores já só havia daquelas amarelas, como Fantasia as descrevia, que deixam um gosto amargo quando se trincam...

 

De um salto, saiu da cama, e dirigiu-se para o exterior, para a rua... Não sabia para onde ia, mas os seus pés levavam-na numa direcção exacta, sem vacilar. Passado algum tempo, e com algumas feridas nos pés, pois não havia levado uns chinelos, chegou à praia. E paralisou durante um pouco, em êxtase com o que via, o mar, como uma criança, infantil, vinha ao seu encontro, mas fugia novamente e Fantasia deixou-se ficar, na areia, descalça.  O mar dava-lhe uma sensação de serenidade, de paz, embora ela não o soubesse explicar, o mar transmitia-lhe calma que nunca antes alguem  lhe dera.

 

Portanto, deixou-se ficar, em pé, com os pés enterrados na areia, esperando que o mar se aproximasse mais um pouco, que lhe segredasse algo... Queria que fossem amigos! Não gostava das pessoas, falavam demais, mexiam demais, faziam demais, não sabiam quando esperar! Mas, adorava o mar, à sua maneira, da sua forma...

 

Ficou daquela forma quase o dia todo, sem comer e sem sentir necessidade disso, aliás, não sentia necessidade de coisa alguma. Na Instituição já estavam habituados às suas idas à praia, mas não gostavam que saisse demasiado dali, uma hora ou duas no máximo.... Sabiam que Fantasia acabaria por voltar, mas não deixariam passar em branco esta infracção.

 

Quando já se via o sol a por, vermelho, enorme, juntando-se com o mar e formando uma mistura de tonalidades, a maré trouxe um objecto até aos pés de Fantasia. Pequeno, de metal, disforme, provavelmente uma parcela de algo atirado ao mar. Ao examiná-lo, a rapariga tomou-o como um presente do mar, uma prova de que poderiam ser amigos e que ele tinha gostado da sua companhia. Resolveu então, regressar à casa, e decidiu passar ali outro dia...


05
Ago 07
publicado por Andi, às 14:45link do post | comentar | ver comentários (6)

Acordou com a sineta a tocar estridente, aguda,  monótona.... Pois ao longo de todo aquele tempo,  já se habituara a tudo naquele local... Gostava disso, de se habituar, de saber o que a esperava.... As fardas pequenas, a comida sem gosto, o trabalho árduo, a medicação diária, e sobretudo a exclusão....   Ninguém lhe falava porque já sabia que não obteria resposta, e se obtivesse seria tão repetitiva, tão sem nexo, sem lógica que seria o mesmo que não dizer nada. O mais provável seria ela responder "Fantasia", pois repetia essa palavra até à exaustão... Dias e dias sem dizer mais nada do que aquilo, sem se expressar, sem gestos nem caretas... É por isso que lhe chamavam "Fantasia", pois pouco ou nada mais ela lhes dizia... E nada sabiam sobre ela...

 

 

Mas ela gostava de ser assim... Tinha os seus hábitos, as suas coisas e detestava que alguém lhes mexesse. Mas tal não acontecia há muito tempo, pois da última vez que tal acontecera a Joana tinha ido parar ao hospital com um braço partido e uma quantas nódoas negras... Fantasia não gostava de sair da casa, não gostava de passear, gostava sim de desenhar e pintar, de estar sossegada no seu canto a olhar a sua colecção de conchas e de búzios, pois a casa ficava relativamente perto da praia. E esse era o único lugar que ela frequentava para além da casa.

 

 

Sim, Fantasia era autista, embora quase niguém reconhecesse, para todos não passava de uma rapariga infantil, anti-social e louca... Vivia numa Instituição desde pequena, pois a sua família não tinha meios nem coragem para albergar na sua casa e na sua vida alguém tão diferente. E por enquanto, é tudo o que necessitam de saber sobre Fantasia...  


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