O despertador toca ao lado da cama onde ela dorme. Endoidece gritando histericamente, tentando contagiá-la por essa histeria infecciosa, fazendo com que ela se levante e deite, na cama de todos os dias, de forma cíclica, repetitiva, autómata. Levante. Deite. Levante. Deite. Sem cessar, sem conseguir respirar mais do que o necessário, fazendo nada mais que o essencial ditado por não sei quem ou por algo mais profundo e mais transcendental do que uma pessoa banal.
Tinha-se deitado muito cansada, mas satisfeita por continuar a sua busca incessante pelo riso, sorriso, genuidade... E acordava por algo que lhe corrompia as entranhas de uma velocidade vertiginosa, como tivesse que fazer e ser tudo tão rápido, tão fugaz, parar não era opção, desobedecer, muito menos. Acordou irritada, deu um murro no despertador, mas ele não se calou, começou a gritar com uma voz progressivamente esganiçada, aflitiva quase, uma voz electrónica, despersonalizada, desumana, impessoal como todas as que ouvia, se é que aquilo era ouvir, aquela mistura de sons (ou seriam alucinações de um cérebro cansado de tudo?) esquizofrénica e autista. O barulho insuportável continuou, teve de se levantar. Teria de ser.
Calmamente, levantou-se, não ligando ao cabelo desgrenhado e aos pés descalços no chão gelado, era bom até, sentir algum frio. Contornou a cama e arrancou o despertador do seu sítio, desligando-o, matando-o de uma só vez, sem dor, piedosamente não lhe causou dor, poderia tê-lo torturado como ele fazia-lhe todas as manhãs, mas decidiu não gastar tempo nisso.
Agarrou o objecto diabólico e foi pô-lo na despensa, num recanto poeirento, onde nunca o seu eu agarrado às convenções sociais, o seu eu mundano, patético se lembrasse de procurar, se lembrasse de resgatar semelhante tortura.
Ligou o rádio muito antigo que tinha em casa, velharias dessas que ninguém tem, e ninguém deve ter, e começou a ouvir uma das músicas que mais gostava, algo que era mesmo música, que a fazia sentir bem, que estimulava as sensações, era isso que ela procurava, numa busca incessante e por vezes, infrutífera.
Deitou-se outra vez na cama desfeita, vazia de si, vazia de tudo, não por baixo dos lençóis, mas limitou-se a deixar-se cair e ficar na mesma posição, olhando um tecto insensível durante toda a música.