Abençoada miopia!
Estava sentado na parte superior do anfiteatro principal da faculdade, nas fileiras mais afastadas do quadro perto de ardósia, antiquado e preservador dos bons costumes didácticos, assim dizia o reitor da universidade de peito inchado, nos corredores.
Estava sentado na parte superior do anfiteatro e nada via. Ainda bem, a sua miopia não o deixava observar claramente o que o professor escrevia no quadro, o que conseguia ver era um emaranhado confuso [emaranhado confuso!] de rabiscos de giz branco, que todos os seus colegas copiavam religiosamente para o caderno, pedaços de sabedoria anciã, dogmática, que constitui um autêntico testamento obrigatório que todos teriam de fazer, se alguma vez quisessem ser lembrados. Ele, contudo, não passava, não mais.
O professor papagueava umas quaisquer leis de um qualquer senhor medieval conhecido, cujo nome não se recorda, e cujo rosto não consegue distinguir de outro qualquer desconhecido também. Teria que saber enunciar essas leias, despejar conhecimentos aos pacotes como se de uma promoção de supermercado se tratasse, conseguir fazer os exercícios na mesma linha (ir)racional com que o professor os resolvia.
Trinta minutos para acabar a aula, a quinta numa série de cinco aulas seguidas, apenas intercalada por escassos intervalos, que consistia no tempo decorrido do tráfego de professores, ir e vir, ir e vir, ir e vir...
O tempo arrasta-se, o tempo esquiva-se, contorciona-se, escapasse-nos entre os dedos, contraria-nos, eternamente... Eternamente! Ah, o tempo!! Maldito.
Com este arrastar absurdo dos segundos prolongados até um máximo de flexão, sentia uma vontade insana de vomitar, sentia-se mal, todo o seu organismo tendia a rejeitar aquilo tudo, não era natural, era contranatura, anti-evolução! Repudiava esse sistema, essas pessoas, repudiava-os, mas também não conseguia deixar de sentir uma espécie de repulsa por si mesmo por pertencer a esse sistema, por ter que conviver, ainda que minimamente com essas pessoas.
Os seus óculos estão na caixa simples azul-escura, a qual tem desde os seus dez anos, desde os seus primeiros óculos ridiculamente alongados e grandes, tinham-lhe oferecido aquela caixa com o seu nome gravado, que é tão ordinário que não vale a pena mencioná-lo aqui, seria desperdiçar o tempo de quem irá ler isto... Irónico, não?
Os óculos estavam na sua caixa azul-escura, a caixa está na sua mala apinhada de livros, a sua mala está aos seus pés, e ele está... Não, não quer saber onde está!
Mas poderia tirar os óculos, colocá-los diante dos seus olhos míopes, curar-se daquela miopia céptica, poderia ver o que estava no quadro, que, por agora pareciam hieróglifos egípcios, mas poderiam tornar-se inteligíveis, poderia observar o conhecimento puro descrito em ardósia, em pormenor... Poderia...
Todos se levantam, a aula acaba. Ele agarra na mala e sai do anfiteatro, ainda sem os óculos.
Ainda míope.