"Façam uma carta para os vossos pais, escrevam o que lhes apetecer, mas têm de escrever um máximo de trinta linhas, e um mínimo de vinte."
Ordenou a professora, senhora do seu nariz arrebitado e pequeno. Os dedos sujos de pó de giz eram magros e aristocráticos, assim como ela. Limpou-os nas calças largas, e sacudiu-as com minúcia posteriormente.
Era professora há apenas dois anos e tinha-lhe calhado ficar ali, naquela serra encalhada, a morar numa casa onde nem tinha água, tinha de a ir buscar. Estava completamente saturada de dormir com os bichos, acordar com centopeias no seu quarto, de aturar os vizinhos sempre a perguntarem " A Senhora Professora precisa de algo?"... Só queria voltar a casa, ficar com os seus pais morar num sítio com algumas regras, disciplina, não ali onde tudo era desregrado, as acções submetidas ao capricho do coração e do livre arbítrio... Então as crianças, bem, nem queria pensar nisso...
Deixou-se cair na cadeira de carvalho velha e talhada das traquinices dos miúdos, estava a ficar desgastada daquele trabalho, daquele ambiente. Mas tinha de ter paciência, já faltava pouco tempo.
"Senhora Professora já acabei!"...
"E eu também!"...
"E eu"...
Aos poucos e poucos todos iam acabando a carta que a professora ordenara escrever. Já eram quase três horas, a escola estava a terminar por aquele dia. Foi mandando sair os alunos à medida que eles acabassem as cartas, havia de corrigi-las em casa.
Três horas. Só restava a Francisca, como sempre. Simplesmente, aquela rapariga não se conseguia despachar, parecia atrasada mentalmente!!
"Já está Francisca?"
"Ainda não."
Abeirou-se dela. Viu que já havia escrito uma folha inteira, o dobro do que ela tinha pedido de máximo.
"Não me ouviste a dizer que eram trinta linhas no máximo?"
"Ouvi, sim senhora professora."
"Então porque não fizeste só trinta?"
"Eu não consegui senhora professora, tinha tantas coisas para dizer, era tudo importante, se eu me esquecesse os meus pais ficavam tristes."
"Não podes fazer assim Francisca, limites são limites, dizem-te até onde deves ir, se eu disse só trinta fazes só trinta, não interessa mais nada, escrevias menos, há sempre algo ou alguém que fica de fora, mas os limites são para se respeitar. Vá, toca a andar daqui."
*
O ar da serra penetrava-se em todos os poros da pele e parecia insuflar os miúdos que corriam, quase voavam pelo monte abaixo. Estava um dia solarengo, e o sol aquecia a terra, que exalava um odor quente e sensual, fazendo despertar nos animais reacções inesperadas.
Era dia de visita de estudo, a única no ano lectivo. Como era uma aldeia muito pequena, não podiam dar-se ao luxo de sair todos os trimestres, teria de ser daquela forma. Iriam à cidade ali ao pé, a um museu, e lá comeriam.
Um barulho rouco perturbou a calma e serenidade da serra, conjuntamente a um esfumaçar negro proveniente da camioneta que se avizinhava.
Era velha, pensou a professora, mas para sair dali por uma tarde, estava óptimo.
Encaminharam-se então, e após dez minutos de gritaria, lá conseguiu que todos se sentassem nos devidos lugares. Aos solavancos lá se dirigiram ao seu destino. Sensivelmente a meio da viagem a camioneta para. Repentinamente. O condutor sai. Pneu. Furado. Não existe outro.
Óptimo, pensou a professora e deixou-se afundar no assento de cabedal esfolado da carreira. O condutor teria de ir a pé à cidade buscar ajuda, ela ficaria ali a cuidar dos miúdos, mais uma vez...
Sentou-se. Mandou os alunos sentarem-se. Uma hora. Duas horas. Três horas. Um burburinho... Os alunos haviam juntando-se todos, encostando as suas cabeças miudinhas e curiosas.
"Que se passa aí?"
"Nada, senhora professora. Foi só a Francisca que está a partilhar o seu lanche connosco."
Francisca era a única que levava lanche, tinha alguns problemas de saúde, nada grave é certo, mas tinha de seguir a sua dieta rigorosamente.
A sua barriga estava já um pouco apertada. Não havia comido de manhã, com a pressa, e aquele calor provocava-lhe sede e sentia-se já meio zonza. Com certeza ela iria oferecer-lhe algo, era de bom tom, a mãe dela sempre o fazia, aquando as avaliações. Em passos miudinhos, e fazendo um barulho ritmado e suave, Francisca aproximou-se da professora.
E com tom inocente disse:
"Eu até dava à professora, mas não há mais, o limite foi ultrapassado, e não devemos ultrapassar limites."
Dito isto foi se sentar. Entretanto a professora agarrava-se ao estômago, tentando disfarçar a fome que tinha.