1 de Novembro de 1901
O vento soprava, como sempre soprava, naquela aldeia, agreste e selvagem, como se quisesse arrancar todas as casas e plantas, e levar as pessoas consigo, levar tudo à sua passagem. O vento insular era sempre assim, diziam os mais velhos, igualmente os considerados mais sábios. Mas ganhava força pela proximidade do mar e da montanha, que encurralavam a freguesia da Agualva, como um cerco, embora a aldeia não se deixasse sucumbir, e espalhava-se de uma forma irregular, com os seus braços de polvo, pelos terrenos adjacentes.
O seu uivo ouvia-se passar entre as casas, nos quintais, palheiros, cerrados, fazendo notar a sua presença. Mas nesse dia não se ouvia só o vento. Ouvia-se também a voz de Maria da Conceição, estridente e aguda, liberta numa tentativa vã de libertar-se da dor, e também para conseguir fazer mais força. Naquelas alturas, maldizia o marido, que a tinha arrastado para aquela vida de sofrimento e trabalho árduo, zangava-se com as duas parteiras, que já lhe haviam ajudado no nascimentos dos dois primeiros rapazes, blasfemava , para no minuto seguinte prometer que haveria de ir e vir à Serreta a pé, por altura das festividades, como já antes fizera. Mas assim que a dor passava, esquecia as dores quase insuportáveis, e tudo voltava ao normal.
Já há cinco horas que Maria se encontrava deitada na sua cama, com as pernas arqueadas, e as mãos agarradas à beira da cama, tentando dar à luz ao seu filho, ou filha, ainda não sabia. As duas parteiras, Lucinda e Guadalupe andavam de um lado para o outro, atarantadas, dando ordens às vizinhas, primas, cunhadas e amigas que ali se encontravam naquele momento de grande aflição para todos.
"Vai tratar dos pequenos, que estão lá fora."
Disse Guadalupe à prima mais nova de Maria, que deveria ter uns dez anos, e que mal saberia cuidar de si, mas que deveria aprender já a tratar das crianças, porque, embora o seu corpo fosse trigueiro e baixo, depressa cresceria e teria filhos, tal como Guadalupe, que teve o primeiro de oito aos catorze anos.
"Vai buscar toalhas."
"Vai chamar o Manuel, que deve estar nas terras, vê se ele pode cá vir."
"Prepara água."....
Eram algumas das ordens dadas pelas parteiras, que se encarregavam da situação. Maria estava a achar aquele parto demasiado demorado, e era-o,em comparação com os outros. Começava a ficar exausta, nem tinha comido nada durante o dia inteiro, e já eram quatro horas da tarde, embora se tivesse levantado com o sol, às sete da manhã. Sentia-se a sugar pela cama adentro, como se a terra a chamasse, como se a quisesse junto dela, debaixo dela, começava a ver tudo enevoado, estava prestes a desfalecer, e ainda só aparecia um pouco da cabeça...
Era uma mulher, caramba! As mulheres são fortes, são resistentes, são... Não sabia definir, mas sabia que não se podia vencer por aquela criança que teimava ficar dentro de si, não se podia deixar vencer pela terra, que chamava por ela. Afinal, tinha tido o seu primeiro filho com dezoito anos, e desde cedo estava habituada ao trabalho duro no campo, e era uma mulher do campo, robusta e delicada ao mesmo tempo, iria conseguir dar à luz àquele filho, aquele pequeno rebento que antevia ser teimoso como tudo!
Um grito profundo e rouco, vindo das entranhas de si mesma, ecoou pelas paredes brancas da casa, e foi fazendo eco, pelo caminho fora, anunciando a notícia, não que já não se soubesse que a Maria do Hildeberto Fonseca, ou sou Fonseca, "estava parindo um filho".
As parteiras gritavam também, agarradas entre si, num esforço final, em uníssono , clamando por aquela nova vida, e não pelo fim de duas.
Durante este instante, e num derradeiro esforço épico de Maria da Conceição, o bebé gorducho e quase roxo saiu num misto de sangue e tecidos, seguido por mais sangue, sangue e sangue. As parteiras pegaram no bebé e verificaram que era uma menina, e disseram-no a Maria da Conceição, mas esta não ouviu pois tinha perdido os sentidos pela grande perda de sangue, que escorria pelos lençóis e toalhas imaculadamente lavados na ribeira, a sabão azul, com o aprumo que Maria se gabava de ter. E ali estavam eles, ensopados de sangue, até que Maria, os fosse lavar de novo...
Lavaram a bebé colocaram-lhe uma fralda de pano, e vestiram-na com um fato branco, dizem que dá sorte vestir um fato branco no primeiro dia, os seus irmãos haviam vestido o mesmo. E após Maria ter recuperado, deram-lhe a filha, a sua filha. E enquanto Maria olhava ternamente para a filha, que mal abria os olhos, mas que podia ver que eram verdes, como o mar em dia de amuo e de teimosia.
"Que nome lhe vais dar Maria?"
Perguntou Guadalupe.
"Eu e o Hildeberto pensamos em Luzia, como somos devotos de Santa Luzia."
"Bonito nome, vai ser uma menina linda, e vai-te ajudar muito nas lidas da casa!"
Exclamou Lucinda, babada para a bebé que tinha ajudado a nascer, orgulhava-se do que fazia, como se fosse uma espécie de deusa que desse a vida aos bebé s que fazia nascer.
Nesse momento, o sino pesado da igreja, tocou as cinco horas, e também anunciou que a missa de celebração do Dia de Todos os Santos tinha terminado. Provavelmente, a maior parte da freguesia iria até à humilde casa de Maria e Hildeberto ver a sua filha, prezados com a roupa da missa, que só usavam ao Domingo e dias de festa, andando em bicos de pé no chão de terra batida, para não sujarem os sapatos, os únicos que tinham e que usavam tão frequentemente como aquela roupa.
E assim foi, o resto da família, vizinhos e conhecidos veio ver a pequena Luzia, que acabava de passar por uma viagem vertiginosa e teimava em fechar os olhos, mesmo durante os próximos dias, negando estar ali, querendo provavelmente voltar atrás, como muitas vezes faria posteriormente.
Enquanto todos olhavam a pequena de olhos verdes, que não se conseguiam ver, o vento continuava a assobiar por entre as canadas e ruas da aldeia, fustigando tudo à sua passagem.