Does it make any sense?! No? So, welcome.
16
Jul 08
publicado por Andi, às 23:16link do post | comentar | ver comentários (2)

Tic-tac tic-tac tic-tac... Olhou de novo para o relógio que pertencera ao bisavó que dera ao seu avó e que dera ao seu pai, sempre na ocasião da partilha de bens, após a sua morte. O pai, porém deu-o quando partiu para o Ultramar, de certa forma foi também quando faleceu. Teria ele a consciência de que não voltaria intacto como havera partido? Que seria lembrado como um herói por ter regressado salvo de uma emboscada em que mais ninguém havera sobrevivido? Não sabia, e o pai nunca lhe falara nisso. Aliás, o pai nunca falava sobre nada, era como estivesse realmente morto. Pelo menos os mortos deixam saudade da sua companhia, os vivos-mortos não.

 

Um silêncio pairava sobre a sala, denso, quase palpável como nevoeiro em dia de morrinha. Pelo menos era assim que a sua avó dizia. Um silêncio ensurdecedor. Talheres tiniam, conseguia-se ouvir perfeitamente o sorver da sopa verde e pastosa por parte dos mais novos, o barulho do desassossego. Contudo, nada para além disso se ouvia. E isto era nada, portanto o silêncio estava ali presente, irrefutavelmente. Misturava-se com os objectos da sala, as cadeiras e a mesa de madeira escura envernizada, com alguns arranhões, apesar dos esforços da sua rica mãezinha em dar óleo nelas todas as Primaveras, numa luta infindável com o pó e o aspecto baço e desinteressante de tudo o que os rodeava. Infiltrava-se na carpete castanha, cor predominante ali, cor de terra, donde lhes provinha o sustento.

 

Cinco minutos passados. Tinha de se levantar e ir dormir. Eram nove horas da noite. Estava escuro lá fora. Um escuro húmido e friorento, que dava um arrepio na espinha, como se uma donzela lasciva se tratasse a instigá-lo a fazer coisas que não deveria fazer. Deveria resguardar-se desse escuro demoníaco. Levantou-se vagarosamente, tentando não arrastar a cadeira, e sem uma palavra encaminhou-se ao seu quarto e dos seus seis irmãos.

 

Não era necessário dizer nada. Estava tudo destinado a ser assim. Aliás, se dissesse algo, isso sim não seria agradável. Vestiu o pijama dessa semana, para depois a mãe lavá-lo e usá-lo e usar na semana após a outra.

 

Não lavou os dentes. Não era seu costume, se bem que o dentista o advertiu acerca disso.

 

Os lençóis davam uma sensação de frescura apaziguadora. Precisava disso. Tentou lembrar-se...Há quanto tempo tinha ido ao dentista? Não conseguiu lembrar-se, poderia ter sido ontem, ou há vinte anos atrás.

 

A verdade é que ele tinha 35 anos  e de nada disto se apercebia, a persistência das horas fazia com que tudo se tornasse igual, e monótono, nada que diferencia-se, nada que valesse a pena marcar a data poderia ser encontrado na sua vida. Só se lembrava do primeiro dia que ajudou o pai na terra. Ajudou, como quem diz, o pai observava-o a cavar a terra, como um menino que pela primeira vez despe uma rapariga, à pressa, com um nervoso miudinho de quem quer provar que é homem, quando apenas sente-se um miúdo que gostaria de voltar para debaixo das saias da mãe. A perna inexistente do pai ainda lhe fazia confusão na altura. Passados tantos anos, esse dia repetiu-se sempre. Todas as horas do dia sabia o que teria de fazer, o que iria acontecer. Efeitos da persistência das horas.

sinto-me: Féérias.....

03
Jul 08
publicado por Andi, às 22:12link do post | comentar | ver comentários (8)

Os números costumam ser vazios. Opacos. Estatísticos, puramente. Contudo, as pessoas associam-lhe muitas coisas, desde a sorte, ou o azar, até à sua identificação... Não, não vou explicar nada pessoal, mesmo porque eu não quero que saibam, não quero que percebam aquilo que é incompreensível aos olhos das outras pessoas que não eu e tu. É irónico estar a falar de números, perdoa-me, mas sabes que gosto de te provocar...

 

Este valor intrínseco dos números não está neles mesmos, mas sim no que se passou. Em ti, em mim.Não vou aqui falar no que se passou. Não é necessário. Tu sabes. E se não souberes, depois relembro-te. Pode ser?

 

 

 

Because you have a secret, and you show it only to me. 

tags: , ,
música: Secret Smile
sinto-me: ..... do i need to say?

17
Mai 08
publicado por Andi, às 21:27link do post | comentar

Ultimamente tenho ouvido Silence4. Já tinha saudades de ouvir.  Não consigo escrever mais nada minimamente decente, por isso aqui fica a música, a tua música...

sinto-me: cansadita
música: Only pain is real - Silence4

14
Mai 08
publicado por Andi, às 20:29link do post | comentar | ver comentários (2)

Atirou-se  de um penhasco. No céu não se suicidavam, nem havia esse conceito. Mas ele fê-lo. Atormentavam-no. No céu!!! Tão bonito era o céu, cheio de flores, de pseudonarcisos, enormes e amarelos que exalavam um cheiro esquisito, e que supostamente, era bom, mas ele não gostava.

 

Teve morte instantânea. O sangue vermelho vivo e líquido escorria-lhe das entranhas para os orifícios, uma espécie de tubos que se alargavam, e que faziam o contacto entre a terra e o céu. Misturou-se na atmosfera. E fez-se chuva. Chuva vermelha. Chuva de sangue. Sangue de chuva.

 

Cá em baixo, no mundo terreno e sem interesse, ela se encontrava já preparada para a chuva, segurando na mão um guarda-chuva. As gotas translúcidas de sangue escorriam pelo guarda-chuva, e respingavam os seus pés. Ela não era ninguém. Não tinha rosto nem expressão. Era preciso?! Era apenas uma ela.

 

Continuou, ela na sua caminhada. E foi atingida por um raio. Um raio, que poderia ser de sol, um maroto, um curioso, que quisesse sentir alguém intensamente. Neste caso, ela. No entanto, ela morreu, mas continuou viva, e continuou.

 

Foi julgada pelos seus modos considerados hereges, que nada mais eram do que uma visão ingénua e puritana das coisas, e foi enforcada. Morreu, mas continuou. E conheceu um ele, um outro ele. E ficou grávida. Ele abandonou-a, claro. Nem merece aparecer na história. Ela morreu ao dar à luz. Desta vez morreu mesmo. O equilíbrio natural era mantido dessa forma. A morte dá lugar à vida, e vice-versa.

 

Mas como nem tudo é perfeito, ou pelo menos nós não o entendemos assim, e a filha nasceu com um defeito, ou uma característica diferente? Uma espécie de corcunda, que que aumentava todos os anos, e que a acabou por esmagar. Morreu.

 

 

Mas ao morrer alimentou diversos vermes, e outros necrófagos que acabaram eles próprios por se tornar enormes.  É através da morte que se chega ao céu, e foi através da morte dela que os vermes chegaram ao céu, o solo terreno era demasiado pequeno para eles.

 

Uma vez lá, atormentavam-no. A ele. Ou será que ele é que se deixava atormentar??

 

 

 

 

"Gostei da tua história."

"Não, é totalmente psicopata"

 

Os colegas de turma, olhavam para aquela suposta arte rabiscada no tampo da mesa, e da história inventada a partir dela. Será que aconteceu mesmo? Os olhos dele diziam que sim, e eram sinceros, além do mais, sei o que são pseudonarcisos, e só haveria uma forma de o saber....

 

 

sinto-me: wtf? xD
música: Crying Shame - Jack Johnson

17
Mar 08
publicado por Andi, às 16:02link do post | comentar

Com o começo das férias, sinto-me nostálgica. Estava a precisar descansar, bem sei, mas não gosto de ficar o dia todo sem fazer nada, sinto-me inútil. Sinto-me mergulhada numa latência, como um animal que sofre uma metamorfose, e espera pela sua forma final.Sinto que tenho de romper essa casca grossa de impedimentos estúpidos que me toldam, que me limitam, de leis e regras que surgem do nada e que são desprovidas de sentido. Não me liguem, estou com um síndrome qualquer devido a estar em casa há demasiado tempo (uma manhã e um pouco da tarde) e que provoca uma espécie de demência, temporária, espero.

 

E como se não bastasse, tenho muitas saudades tuas... Não sou de cristal, como digo, mas sou lamechas e tu sabes... 

 

Pronto, e fica aqui mais um post irracional!

 

 

música: Howie Day - Collide
sinto-me: nostálgica, what else?

14
Mar 08
publicado por Andi, às 21:38link do post | comentar | ver comentários (9)

 Os seus olhos abriram lentamente, vislumbrando, primeiro uma névoa, e depois a imagem nublada foi clarificando e tornou-se nítida. Tinha acordado. Encontrava-se confusa e esquisita. Não sabia onde estava, o que tinha acontecido nos últimos, momentos? Horas? Dias? Não sabia. Não tinha qualquer noção na sua mente, a não ser a da sua existência num mundo estranho e inócuo. E ainda assim, não sabia se estaria numa espécie de sonho estranhamente lúcido e real... Pois não tinha memória de alguma vez ter estado naquele local...

 

Memória! Conceito meramente inventado pelo Homem para não cair nas garras do desespero, para poder almejar, pelo menos, o controlo do incontrolável, a sensação de segurança de quem mantém o que é necessário, e exclui o que não é da sua mente. Vã segurança! Comparou aquela segurança àquela que tinham as pessoas falsamente crentes, agarradas à salvação que pensavam conseguir seguindo as regras de moral ditadas por alguém mesquinho, que Fantasia não sabia quem era... Laivos de imagens da procissão da aldeia a passar surgiu-lhe. As crianças pequenas e inocentes, vestidas de um branco imaculado seguiam em fila, com a vela trémula nas mãos, atrás do andor do padroeiro da freguesia que Fantasia não fazia a mínima ideia. Arminda costumava ir descalça, vestida de preto da cabeça aos pés, murmurando uma ladainha impossível de perceber, enquanto ela e os restantes eram obrigados a ir atrás dela... Arminda!!! Já começava a lembrar...

 

As imagens começavam a aparecer na sua cabeça, vindas daquela associação, enquanto ela tentava reconhecer o quarto onde estava. Não, não o conhecia, não estava na Instituição, portanto. Conhecia todos os recantos da Instituição, vivia lá desde que se conhecia. Todos os rostos lhe eram familiares, e no entanto, tão iguais entre si, não falava com ninguém e ninguém falava com ela à excepção de Joana. Joana e a sua recente ida ao mercado, que dia fantástico...

 

O quarto estava pintado de cal, branca como a espuma do mar, e transmitia um aspecto de humildade e limpeza, exceptuando duas pequenas manchas de humidade num canto do quarto. As cortinas e a manta da cama eram ambas azuis escuras, contrastavam com as paredes alvas pontuadas aqui e ali com algum quadro ou fotografia. Ao canto do quarto pequeno e limpo estava uma arca de madeira pesada, tinha um aspecto antigo, e exibia algumas cicatrizes provavelmente feitas por algum miúdo traquinas, Fantasia pensou. Aos seus pés tinha uma manta de retalhos velha, com cores desbotadas, feita de tecidos que restaram de blusas, calças, vestidos feitos à mão por alguém paciente e trabalhador.

 

Sentou-se na cama, que rangeu sob o seu peso, e lentamente levantou-se. Sentia a cabeça pesada, e os joelhos ameaçavam ceder, estava fraca, e, teve noção que estava ferida nos pés e nos joelhos. Respirou profundamente, tentando arranjar forças para sair dali, ou, pelo menos saber onde estava, se estava em segurança, e, ao mesmo tempo, levantou a cabeça, e olhou pela janela, para os campos luxuriantes vestidos de verde vivo, e amarelo, das ervas azedas, e o azul claro do céu, o branco das nuvens, o rosa manchado das hortênsias que haviam no quintal... Maravilhava-a toda aquela pujança colorida que a Natureza exibia, tão complexa, e ao mesmo tempo tão simples, que passava muitas vezes imperceptível aos olhos das pessoas.

 

Estava  imóvel, a olhar pela janela, quando ouviu a porta abrir-se atrás de si, e um torpor apoderou-se do seu corpo, impossibilitando que ela se virasse imediatamente para trás.

 

"Fantasia..."

 

Conhecia aquela voz. Era Pedro! Pedro, que a tinha tentado apanhar quando ela fugira da Instituição, e que a denunciara, juntamente com José! Agora lembrava-se de tudo, tudo se tornava nítido agora... Como estava revoltada com aquela traição de José, que era seu único amigo, e de Pedro também, a quem até já tinha perdoado o roubo do búzio, embora detestasse que mexesse nas suas coisas, alterassem a sua ordem!!

 

A sua única incógnita era saber onde estava, e como sair dali! Não podia entrar em pânico, mas sentiu uma onde de calor percorrer-lhe o corpo e o seu coração batia acelerado , sentia-o como a terra sente os cascos de um cavalo enfurecido que corre.

 

"Fantasia..."

 

Disse ela. A voz saía aparentemente segura, mas conseguia-se descortinar uma ponta de nervosismo e raiva. Já antevia tudo, como se de uma visão premonitória se tratasse, o seu retorno à Instituição, o regozijo evidente no sorriso sarcástico de Arminda, ver de novo aquela besta do Alberto, voltar à prisão dissimulada, ao cativeiro sufocante que era a rotina daquele lugar...

 

Ele avançou alguns passos, e entrou no quarto, em passadas largas. E sentiu, por instantes, os olhos grandes e um pouco brilhantes, de lágrimas talvez - pensou ele, de Fantasia, dela, ela...

 

Ela recuou os mesmos passos, encostando-se à parede alva daquele quarto. Percebendo que podia ser mal interpretado, Pedro decidiu explicar tudo a Fantasia, não a queria assustar, tão pouco magoar.  Voltou a recuar, e sentou o seu corpo alto e esguio no chão esfregado do quarto. Cruzou as pernas, e passou a mão pelos cabelos castanho escuro, afastando-os dos olhos castanhos e doces, que ficaram completamente destapados. 

 

"Eu não estou aqui para te magoar, nem fazer mal."

 

Começou por dizer Pedro, tentando acalmar Fantasia, ainda sentia a sua desconfiança apontada pelo olhar de soslaio permanente e dos lábios sem expressão dela.

 

Fantasia estava, de facto, desconfiada, não confiava em Pedro, sabia que ele a tinha entregue, e que lhe tinha feito algo, para acordar ali, sem saber dos acontecimentos recentes, pelo menos até quando o viu na praia, nem sabia se tinha havido mais alguma coisa após isso... Nem sabia que dia era, também nunca lhe interessava, essa convenção de tempo era inócua para ela, ela dividia o tempo pelo seu ritmo natural, mais lento no Inverno, e mais rápido no Verão, constante e mutável, obstinado e tolerante. Mas decidiu que não poderia fazer nada, por enquanto, iria ouvir o que lhe tinha a dizer, e depois resolveria como fazer.

 

"Vou-te contar desde o início, para perceberes. Eu chamo-me Pedro, como já deves saber, não que isso te interesse, mas adiante, e o meu apelido é Ferreira. O José também é Ferreira, ele é meu parente, é meu tio. Conheço-o desde pequeno, e é dos poucos, senão o único, da minha família com quem tenho um bom relacionamento, e até um relacionamento. Fui parar até à Instituição porque os meus pais maltratavam-me, e obrigaram-me a trabalhar desde miúdo, e portanto, deixaram-me a cargo de um funcionário governamental, o Alberto, e o resto tu sabes."

 

Aclarou a voz. Não sabia bem o que ganhava ao contar-lhe tudo, se calhar nem iria alterar nada, mas não conseguia mais guardar aquilo tudo para si. Portanto, olhou para o chão, para não ter que enfrentar o olhar inquiridor de Fantasia, e prosseguiu.

 

"O meu objectivo nunca te foi chatear, na noite em que chegaste, reparei em ti, quando passaste pelo corredor, parecias chateada, e a única não interessada em prender a minha atenção. Todos pensavam que era filho de Alberto, embora ele me tratasse como tal, não de uma maneira afectuoso, mas com rigidez, com um orgulho prepotente de ter um rapaz forte e ajuizado , embora eu ache que não seja nenhuma das coisas"

Ri-se.

 

"Enfim, apenas quis-te conhecer um pouco melhor, já que a Instituição seria o meu lar... Portanto fui até ao teu quarto, no dia seguinte, mas ainda estavas a dormir, parecias estar a dormir tão descansada, que não te quis acordar, ia-me embora, mas foi aí que vi as tuas coisas... Os teus quadros... Os teus pequenos objectos, que na altura pensei que recolhesses por ter algum significado, incluindo o búzio. Retirei-o, pensando que não te importavas, já que eu te ia devolver, não queria ficar com ele, queria encontrar um semelhante para te oferecer..."

 

Nesta parte, Pedro corou um pouco, não estava habituado a dizer aquelas coisas, ainda por cima a raparigas, era estranho, contudo não parou.

 

"E foi então que decidi ir falar com o meu tio, que, como sabes, é um homem do mar, conhece-o e a alguns dos seus mistérios. E, fui-lhe perguntar onde ele saberia encontrar um búzio parecido. Ele respondeu-me que te conhecia e que tinha sido mesmo ele a entregar aquele búzio, e também acrescentou que não te deveria ter tirado, aí já me apercebi que poderias ficar realmente chateada, portanto dei-lho e fui procurar um, e quando me encontraste, era precisamente o que estava a fazer.  Claro que depois de cair à agua, não procurei mais búzio nenhum..."

 

Será que ele está mesmo a dizer a verdade? Pensava Fantasia, enquanto Pedro continuava a sua extensa exposição dos factos...

 

"Sinto-me culpado pelo raspanete que levaste da Arminda e do Alberto, e por teres sido castigada por mim, ainda tentei convencer Alberto a não te dar nenhum castigo, mas o máximo que consegui foi ele não te dar um castigo que envolvesse fome ou violência, porque... ninguém merece isso..."

 

Pedro parou, repentinamente, de falar e instalou-se um silêncio um pouco incómodo em que o barulho da respiração e de algum movimento involuntário faziam-se ouvir perfeitamente. Não era momento para parar a conversa, portanto, aclarou a voz e prosseguiu.

 

"Os dias seguintes mantive-me afastado de ti, para te afastar de problemas, embora a tua presença sempre me causasse curiosidade, queria, e quero saber mais de ti... Eu sei que pareço completamente irracional e demente, mas não consigo deixar de dizer a verdade! Bem, continuando, as coisas permaneceram mais ou menos calmas até há uma semana atrás... Quando o Alberto tentou fazer-te mal, ele até não é má pessoa, mas não sei porquê detesta que lhe façam frente, ainda por cima mulheres."

Pedro reparou na careta de desagrado que Fantasia fez... Compreendia que ela odiasse Alberto, mas tinha aprendido a não ver tudo a preto e branco, aliás, a maior parte das coisas que interpretava eram cinzentas. Afinal de contas, Alberto tinha-o ajudado quando mais precisou, e estava-lhe muito grato por isso.

 

"Quando ouvi os gritos naquela manhã, e fui à cozinha e vi toda aquela situação, o sangue, Alberto gesticulando que nem um doido, e a espumar de raiva, percebi que algo mau se passara, e como não te via, fui-te procurar. Depois vi-te a fugir da Instituição e percebi que não regressarias, não queria que fosses sozinha, portanto fui atrás de ti... Mas perdi-te. Portanto, regressei à Instituição e fui buscar as tuas coisas, e alguma comida e água, com a ajuda de Filipa que disse que também te queria ajudar, embora não tivesse a coragem para fugir dali, e saí também, não me ia adaptar de qualquer forma, e nunca cheguei a conhecer-te. Pensei que irias pedir ajuda ao meu tio como era com ele que falavas, portanto telefonei-lhe antes de sair, e dirigi-me à sua casa, onde estamos agora. E vi-te. Fiquei contente por estares bem, pelo menos, relativamente bem. E foi aí, que desmaiaste. Ficaste muito fraca com o sangue que perdeste, e a tua fuga pela mata não ajudou muito. Portanto, desde há cinco dias tens ficado aqui a repousar. Tiveste febre muito alta, e passavas metade do dia a dormir, é perfeitamente normal que não te recordes, por enquanto... Mas basta de conversa fiada, já falei demais, só quero saber agora se aceitas a minha ajuda e companhia. Basta fazeres sinal com a cabeça."

Sabia que ela poderia considerá-lo um doido varrido, um psicopata qualquer, e que muito provavelmente não aceitaria a sua ajuda, mas tinha que tentar, nunca saberia se nunca o fizesse.

 

Fantasia estava perplexa, estava confusa com aquilo tudo, no entanto a expressão de Pedro parecia sincera.  Tinha aprendido a não confiar em ninguém a não ser em si própria, e mesmo assim errava demasiadas vezes. Iria aceitar, e acreditar em Pedro, que parecia verdadeiramente preocupado com ela. Acenou afirmativamente, para felicidade de Pedro que logo lhe mostrou um sorriso rasgado e genuíno.

 

"Obrigado Fantasia. Anda, segue-me. Deves ter fome!"

Levantou-se de rompante, abriu a porta e saiu. Fantasia seguiu-o, e foi apreendendo pequenos pormenores da casa, os tapetes rudes, pequenas flores em vasos, no estrado, junto da janela, algumas peças de renda que pendiam de um móvel tosco...

 

Havia um cheiro no ar, era... peixe! E começava a ficar com fome, já comia qualquer coisa, e aquele cheiro abria-lhe um apetite voraz. Chegados à cozinha, Fantasia encontrou um homem, que identificou como José, e uma mulher, com pele grossa curtida do trabalho, certamente, mas com um ar doce e maternal, que supôs ser mulher do pescador, como ele o confirmou a seguir, apresentando-a como Clarisse .

 

O casal mostrou-se extremamente simpático e as desconfianças de Fantasia, bem como o seu normal isolamento caíram por terra, e tornou-se afável. Já não se recordava de ser mimada assim há muito tempo. Jantaram na cozinha, numa mesa apertada, mas acolhedora, e comeram com fartura, embora Fantasia suspeitasse que eles geralmente não comiam assim. Comeu tanto e tão à vontade que até Clarisse , lhe arranjou um pouco de pão de milho e peixe para a viagem. Fantasia interrogou-se de que estaria ela a falar, mas continuou a comer.

 

Depois de comer, reuniram-se na pequena sala, que era contígua à cozinha e conversaram, sobre coisas banais, mas que pareceu a Fantasia uma conversa importantíssima , se bem que ela não participou muito na conversa, a sua capacidade comunicativa nunca fora das melhores, e até agora nunca lhe tinha feito falta, mas agora sentia-se um pouco irritada por não conseguir fazer perceber-se, ainda que gesticulando e falando atabalhoadamente, percebia-se.

 

A conversa assim decorreu, até que veio à baila a fuga de Fantasia e de Pedro. José, então informou os dois que tinha ouvido comentários dos pescadores acerca da responsável da  Instituição, oriunda da aldeia, e solteira desde sempre, que ela tinha acusado um funcionário governamental de assédio, pelas próprias palavras dos pescadores amodes ca sinhora era quas'uma sposa pa ele, tava sempre a fazer-le o qu'ele qria , e ele tinha uma mulher e inté uns puquenos , uma pouica vergonha...". Pelo que José conseguiu saber, Arminda fora despedida, e Alberto tinha tido graves problemas com a mulher, mas lá permaneceu casado, e perdeu estatuto e prestígio no emprego, embora não o tenha perdido. Mas o mais relevante para os dois fugitivos, era que o Director da Instituição já tinha ordenado que o procurassem, não com muito alarido, pois queria manter a máxima discrição, e não queria alarmar a população.

 

"Como eu já previa desde o início, não podem ficar aqui!"

 

Afirmou peremptoriamente José. Clarisse concordou, abanando a cabeça. Pedro olhou para o chão, não vendo outra solução. Fantasia... Levantou-se e disse que não! Embora detestasse a Instituição e tudo o que ela representava gostava daquela terra, tinha-se habituado a ela, ao mar, não queria deixar as coisas que conhecia e de que gostava... Gostava da sua rotina, da familiaridade das coisas.

 

Não houve outra opção senão partir, era partir ou ser apanhado, e perante esta situação Fantasia concordou em ir, mas perguntava-se para onde, não conhecia mais nada para além daquela pequena vila, desconhecia o tamanho do mundo, a sua aleatoriedade, a sua multiplicidade, semelhanças e diferenças, mas já tinha mudado tanto para conseguir aquela libertação que ansiava desde sempre, a libertação daquele peso que carregava e que não o sabia definir nem limitar...

 

*

 

O mar não estava calmo, nem estava tempestivo, estava... Ansioso, expectante pelo que haveria de vir. Ela também. Lambia-lhe os pés desta vez não descalços, mas sim, dentro de umas sandálias confortáveis que José lhe arranjara. Entrou para dentro, levando consigo algumas roupas que Pedro trouxera da Instituição, juntamente com alguns dos seus desenhos e materiais de pintura e ainda o farnel que Clarisse tinha gentilmente arranjado. Após ela entrar, entraram também Pedro e José, que pôs o motor do barco a trabalhar e os levou a abandonar o porto, que começava a ficar distante com Clarisse a acenar, composta no seu vestido de cores tristes.

 

Começava a ficar um pouco angustiada, pois o desconhecido assustava-a um pouco, tinha medo de não gostar, tinha medo de não se conseguir libertar, tinha medo que fosse pior, tinha medo... Pedro percebeu essa angústia e aproximou-se dela, sentou-se ao pé dela, e estendeu-lhe a sua mão, um pouco trémula, mas bondosa. Fantasia, com lágrimas que ameaçavam cair, via-o um pouco desfocado. Nunca dera a mão a ninguém, mas tinha medo, e precisava de algum apoio, carinho. Sentia-se completamente parva, desprovida de razão, mas aceitou a mão de Pedro. Ele apertava-a forte. Uma lágrima escorregadia molhou as mãos unidas de ambos. Ele olhou docemente para ela, embora ela não o conseguisse ver, tinha a cabeça baixa.

 

"Fantasia..."

 

Disse Pedro, deslumbrado com o que via.

 

"É uma ilha!"

Aquele pedaço de rocha vulcânica erguia-se agora diante deles, imponente e orgulhoso como Fantasia, verdejante e vivo, como se de uma criança se tratasse, uma criança traquinas que lhes tinha pregado aquela partida. Várias aves sobrevoavam a ilha, e dada a distância a que se encontravam, não conseguiram distinguir onde ficava a vila e a Instituição em que eles tinham vivido toda a vida, mas Fantasia sabia que ela estava algures lá, e que a tinha deixado, finalmente.

 

"É uma ilha, e eu nunca soube...!!"

Ela também nunca soubera. Mas agora sabia-o. E não iria se esquecer disso.

 

 

 


 

 

Este foi o último capítulo de Fantasia, o que não significa que Fantasia pare aqui, estanque. Ela continuará enquanto eu continuar, porque embora não seja eu, existe em mim, e eu nela. É difícil definir até quanto eu retiro aspectos da minha vida e coloco na de Fantasia. Fantasia... apenas! Queria agradecer aos meus amigos que me apoiaram e incitaram a escrever, como o JP e o Hélder (é sim com acento), e ainda à Mel de Vespas, a minha leitora mais assídua.

Por fim, queria dedicar esta história ao Jossy , porque foi a pensar nele que escrevi isto, porque és o meu Pedro, e me dás a mão quando preciso... Enfim, é por ti que sou irracional...

 

música: All at once - Jack Johnson
sinto-me: Um pco lamechas

17
Fev 08
publicado por Andi, às 17:45link do post | comentar | ver comentários (2)

Sinto-me à deriva há dias... O tempo passa tão depressa, acho que nem chega a passar, não há tempo. Tudo se resume à efemeridade. 

Boiar na superfície turva do mar salgado e rebelde. Sentir nada mais que o movimento das ondas, movermo-nos em sintonia, e fechar os olhos com tanta força que quando os abrirmos a luz será demasiado intensa. Ficar com as mãos enrugadas, como se de velhice ou trabalho fosse repleta a nossa vida. E de um gesto só, levantarmo-nos, e encaminharmo-nos no sentido contrário ao mar, quando o que queremos é não sair de lá. Porque não ficar? Para quê sair se deixamos de nos sentir tão intensamente, como quando flutuamos? O que nos leva a isso? Nem quero pensar nisso. Só espero pela próxima vez que lá me encontrar.

 

 

 

Sinto saudades do mar...E tuas.

música: The fountain - Clint Mansell
sinto-me: ....

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