15 de Novembro de 1901
O dia tinha começado havia pouco tempo, apenas uma luz ténue entrava nas janelas embaciadas pelo orvalho matinal da casa de Maria da Conceição e Hildeberto Fonseca. Contudo, já se observava alguma azáfama dentro de casa, a mulher arranjava o pão que havia cozido na sexta passada, migando-o para dentro de uma tigela e entregando-a ao marido, alimento para o confortar para uma manhã de trabalho árduo.
Havia apenas uns murmúrios ténues trocados entre o casal àquela hora matinal, os filhos dormiam todos divididos por dois quartos, incluindo a pequenina que dormia no quarto deles, no berço, descansava de uma noite passada em claro, gritada a plenos pulmões, como se lhe espetasse agulhas em todo o corpo, finava-se, debatia-se nos braços da mãe, enquanto esta tentava acalmá-la, mas parecia não ter efeito. Por fim, vencida pelo cansaço, deixou-se dormir envolta nos lençóis brancos bordados pela mãe, uns meses antes da sua vinda atribulada a este mundo.
Após a refeição Fonseca disse à mulher:
"Só volto depois à hora do almoço. Vou agora para as vacas, lá para os cerrados acima da ladeira."
"Toma cuidado, não sei se o tempo vai ficar mau."
Respondeu Maria com uma nota de preocupação na voz, tinha aprendido com a mãe os sinais para prever o tempo, conseguia ver os prenúncios no comportamentos dos animais, na posição da lua, em si até, senti-a apenas. Inclusive fazia um calendário em que anotava o tempo que fazia durante o primeiro mês de cada ano, nos primeiros doze dias do mês anotava com um desenho o tempo que fazia, pois não sabia ler nem escrever, apenas conhecia a noção do tempo e dos números, esses dias serviam para arremendar cada mês desse ano, os próximos doze dias desarremendavam, dando uma noção mais precisa do tempo que iria estar. Nada era certo, nada era definitivo, era necessário sensibilidade para distinguir os prenúncios verdadeiros dos falsos. Todas estas condições faziam com que ela fosse extremamente sensível nesse aspecto. Não falava abertamente com ninguém acerca disso, pois iriam considerar maluca, dizer que se sente o tempo que faz, onde já se viu?! Não o escondia também, é certo, tanto que tinha avisado o marido, sentia o capricho do tempo, o vento começava a sussurrar matreiro, o sol que entrava pela janela virada para nascente parecia de pouca dura.
"Lá nada. O tempo vai estar bom hoje. Não te arrelies mulher. Na hora do almoço cá estarei!"
"Nosso Senhor te acompanhe."
Arrematou a mulher a conversa com uma despedida pouco usual.
O marido foi à rua, preparou o material necessário e lá foi, pelo caminho íngreme que ligava a casa aos pastos circundantes, estava preocupado com uma vaca que estava na altura de parir e ainda não mostrava quaisquer sinais de parto.
Maria observava, ansiosa, o marido a afastar-se. Nada daquilo lhe parecia bem, um nó apertava-lhe a garganta, imobilizava as cordas vocais, angustiava-a! Parecia um dia normal, mas a terra estava à espreita, à espera de algo substancialmente grave e grandioso.
Abanou a cabeça, tentando afastar aqueles sentimentos, e foi ao seu quarto, levada pelo choro da pequena Luzia. Pegou-lhe ao colo e supondo que teria fome, puxou a blusa para cima e alimentou-a do seu leite.
A bebé fechou os olhos enquanto bebia, e a mãe ficou a olhar para ela, descansando do que seria um dia longo. Tinha o seu corpo endurecido pelo trabalho, talhado para as suas tarefas rotineiras, embora ainda fosse nova, ainda tivesse vinte e sete anos, já tinha uma velhice causada pelo trabalho, pelo vento carregado de sal, pelos filhos, que embora amasse, tinham vindo cedo na sua vida, quando ainda por dentro se sentia uma menina, mas isso eram preocupações supérfluas. Era uma Mulher. Apesar do trabalho ainda mantinha os seus traços de beleza insular que a caracterizavam desde sempre.
Levantou-se deixando a bebé no berço, e certificando-se que todos os filhos dormir, pegou num cesto de vime com roupa suja e saiu de casa, andando apenas uns poucos metros na direcção do quintal, na direcção da ribeira, e aí encontrou as suas vizinhas.
"Ora bons dias, Lucinda e Guadalupe. Como estão os pequenos?"
Maria referia-se aos filhos que as suas vizinhas tinham e que ainda eram relativamente pequenos, como os seus! Lucinda, uma mulher bonacheirona, com rosto redondo, cabelos castanhos, e mãos rechonchudas era uma mãe modelo, e mesmo o parecia, era de uma calma inusitada, mas quando se tratava dos seus rebentos, podia transformar-se radicalmente.
Já Guadalupe tinha sempre um feitio mais explosivo, era muito energética e prática, mas também muito orgulhosa do que fazia como parteira, dos seus haveres, dos seus filhos e do seu corpo, embora todas elas fossem bonitas à sua maneira, a beleza de Guadalupe era uma beleza vistosa que atraía os homens famintos, que os cegava de luxúria, e esse aspecto já havia sido seio de muitas desavenças na freguesia no passado.
À laia de resposta à pergunta feita pela vizinha ambas as mulheres acenaram com a cabeça, entre uma escovadela e passar a roupa por água.
“Quando é o baptizado da tua pequena?” perguntou a mais velha, Guadalupe.
“Ainda bem que me falas nisso, vai ser no Domingo, daqui a três dias. Queria convidar ambas a aparecerem na missa. Deram-me uma grande ajuda, a missa não seria o mesmo sem vocês!”
“Descansa que vamos aparecer Maria. É na hora do costume?”
Maria anuiu com a cabeça.
Era costume baptizar as crianças poucos dias depois de estas nascerem, Maria não queria que a sua pequenina não fosse consagrada aos olhos de Deus como sua filha, aliás, era também uma precaução contra as tentações futuras e os poderes malignos. Fazia dezassete dias no dia do seu baptismo a pequena Luzia, era mais do que tempo de se consagrar. Já tinha o vestido de linho branco preparado para o dia especial, e ideias acerca do que seria o almoço nesse dia de festa começavam a aparecer na cabeça de Maria. Seria necessário levantar-se mais cedo do que o costume, tirar alguma carne da salgadeira, matar uma galinha velha, fazer umas sopas de carne, e por fim fazer papas, para agradar aos seus outros petizes. Iria pedir também que a sua mãe e tias, e igualmente primas, se juntassem à família naquele dia.
Absorta nesses pensamentos, nem deu conta que já tinha acabado de lavar a roupa toda, e era necessária pendurá-la. Tal como ela, as vizinhas já tinham terminado a sua tarefa, e cada uma iria dirigir-se a sua casa para continuar as tarefas domésticas. Despediram-se alegremente e partiram.
Com o cesto de lado, Maria continuou o caminho naquele pequeno carreiro de terra batida que a levava a casa, ao quintal onde tinha uma pequena corda, onde estendia a roupa. Acto contínuo, ao executar tal tarefa, e enquanto a fragrância do sabão azul se propagava no ar, reparou que as roupas começavam a balançar num ritmo cada vez mais veloz, não tardaria que levantassem voo e fossem parara um lugar longínquo, ultrapassassem a barreira insular e se transportassem para um Mundo Novo, um Mundo de novidade e de mistério. Recolheu a roupa sem mais delongas e colocou-a novamente no cesto, para poder estendê-la numa altura mais propícia. Preocupada, regressou a casa, e encontrou o filho mais velho acordado, com os seus olhos grandes, que o caracterizavam, a olhar alheado pela janela, observando as faias na sua dança frenética movidas pela melodia do vento.
“Anda Manuel, vem comer.” Disse a sua mãe, tentando ignorar os presságios.
O rapaz obedeceu, como era seu costume, e a ele seguiram-se os seus irmãos naquele ritual matinal de sequência, acordava um, e os outros acordavam com o barulho, começava a comer e os outros seguiam-se. A mãe via-se numa espiral de actividades, acode aqui, corre ali, serve a comida ao mais novo, manda o mais velho ajudar os mais pequenos, de modo a que todos estivessem prontos na altura devida. Por momentos Maria gostava de ver, embevecida, os seus filhos naquela altura da manhã, quando acordavam de um sono inocente, e ainda não havia brigas e disputas entre eles, como acontece como todos os irmãos, quando ainda não havia problemas domésticos para resolver, e tudo se reduzia a uma questão de azáfama para alimentar todos.
Como ainda era bastante cedo, e visto que Hildeberto ainda estava nos cerrados, mandou as crianças brincarem, perto de casa, é certo, mas permitiu dar-lhes aquele tempo de descontracção antes dos mais velhos executarem pequenas tarefas que lhes eram incumbidas pelo pai, para os rapazes, e pela mãe, pelas raparigas.
Foi com alegria que os pequenos ouviram tal permissão e com igual satisfação correram de casa a correr descalços para darem largas à sua imaginação, descobrindo cantos perdidos nos terrenos circundantes da sua casa, e mesmo terrenos mais afastados, sem a mãe saber, obviamente.
Maria permitiu-se também um tempo de descanso daquelas lidas matinais. Pegou na cadeira de madeira tosca que havia no seu quarto de casa, que havia sido feito pelo seu pai para o seu casamento, bem como o resto da mobília da casa, e que ainda conservava, e esperava conservar enquanto vivesse, conservando igualmente a memória do pai que já havia morrido, que Deus lhe dê descanso. O pai que sempre a ensinara a fazer as tarefas que lhe eram confiadas com a maior perfeição e orgulho, mesmo que lhe fosse custoso fazê-lo, um homem de uma ética surpreendente, contudo de uma teimosia inabalável, inquebrável e que lhe provocou alguns atritos com a filha, mas que acabaram por acabar com a cedência da filha. Ajudou-a a ser tolerante e perseverante. Muito devia ao seu pai.
“Também hás-de aprender muito com o teu pai, Luzinha.” Murmurava Maria, enquanto se balançava na cadeira de recordações.
Ficou algum tempo observando-a e falando com a pequena baixinho para que não a acordasse, falando-lhe no avô que não conheceria, pelo menos fisicamente, pois Maria da Conceição queria ter a certeza que a sua neta conhecesse o génio do avô, pelas suas memórias, pelos seus feitos que tinham deixado uma marca indelével na família.
Acordou sobressaltada com os seus filhos a correrem pela casa adentro, dizendo que tinham fome, e que estava chovendo na rua.
Constatou que assim era, olhando pela janela, não conseguia observar mais do que grossas cordas de água que vinham furiosamente castigar o chão, deixando tudo em lameiro, provocando a ribeira, que se exaltava e que ameaçava saltar do seu lugar.
Já passava da hora do almoço, havia há muito, pois os seus filhos nunca teriam vindo para casa à hora do almoço para comer, era um costume já ter que gritar várias vezes com eles para deixarem a brincadeira e vir comer. Recriminou-se por ter adormecido estupidamente, e ter baixado a guarda nas suas funções! Lembrou-se do marido, e virou-se para Manuel:
“Onde está o teu pai? Já voltou a casa?” o tom de preocupação na voz traía a sua aparente calma.
A resposta dada por aqueles grandes olhos esverdeados foi negativa.
Ps. Não esqueci que o blog fez dois anos! Parabéns a quem ainda me acompanha.