Does it make any sense?! No? So, welcome.
04
Set 09
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15 de Novembro de 1901

 

 O dia tinha começado havia pouco tempo, apenas uma luz ténue entrava nas janelas embaciadas pelo orvalho matinal da casa de Maria da Conceição e Hildeberto Fonseca. Contudo, já se observava alguma azáfama dentro de casa, a mulher arranjava o pão que havia cozido na sexta passada, migando-o para dentro de uma tigela e entregando-a ao marido, alimento para o confortar para uma manhã de trabalho árduo.

 

Havia apenas uns murmúrios ténues trocados entre o casal àquela hora matinal, os filhos dormiam todos divididos por dois quartos, incluindo a pequenina que dormia no quarto deles, no berço, descansava de uma noite passada em claro, gritada a plenos pulmões, como se lhe espetasse agulhas em todo o corpo, finava-se, debatia-se nos braços da mãe, enquanto esta tentava acalmá-la, mas parecia não ter efeito. Por fim, vencida pelo cansaço, deixou-se dormir envolta nos lençóis brancos bordados pela mãe, uns meses antes da sua vinda atribulada a este mundo.

 

Após a refeição Fonseca disse à mulher:


"Só volto depois à hora do almoço. Vou agora para as vacas, lá para os cerrados acima da ladeira."


"Toma cuidado, não sei se o tempo vai ficar mau."


Respondeu Maria com uma nota de preocupação na voz, tinha aprendido com a mãe os sinais para prever o tempo, conseguia ver os prenúncios no comportamentos dos animais, na posição da lua, em si até, senti-a apenas. Inclusive fazia um calendário em que anotava o tempo que fazia durante o primeiro mês de cada ano, nos primeiros doze dias do mês anotava com um desenho o tempo que fazia, pois não sabia ler nem escrever, apenas conhecia a noção do tempo e dos números, esses dias serviam para arremendar cada mês desse ano, os próximos doze dias desarremendavam, dando uma noção mais precisa do tempo que iria estar. Nada era certo, nada era definitivo, era necessário sensibilidade para distinguir os prenúncios verdadeiros dos falsos. Todas estas condições faziam com que ela fosse extremamente sensível nesse aspecto. Não falava abertamente com ninguém acerca disso, pois iriam considerar maluca, dizer que se sente o tempo que faz, onde já se viu?! Não o escondia também, é certo, tanto que tinha avisado o marido, sentia o capricho do tempo,  o vento começava a sussurrar matreiro, o sol que entrava pela janela virada para nascente parecia de pouca dura.

 

"Lá nada. O tempo vai estar bom hoje. Não te arrelies mulher. Na hora do almoço cá estarei!"


"Nosso Senhor te acompanhe."


Arrematou a mulher a conversa com uma despedida pouco usual.

 

O marido foi à rua, preparou o material necessário e lá foi, pelo caminho íngreme que ligava a casa aos pastos circundantes, estava preocupado com uma vaca que estava na altura de parir e ainda não mostrava quaisquer sinais de parto.

 

Maria observava, ansiosa, o marido a afastar-se. Nada daquilo lhe parecia bem, um nó apertava-lhe a garganta, imobilizava as cordas vocais, angustiava-a! Parecia um dia normal, mas a terra estava à espreita, à espera de algo substancialmente grave e grandioso.

 

Abanou a cabeça, tentando afastar aqueles sentimentos, e foi ao seu quarto, levada pelo choro da pequena Luzia. Pegou-lhe ao colo e supondo que teria fome, puxou a blusa para cima e alimentou-a do seu leite.

 

A bebé fechou os olhos enquanto bebia, e a mãe ficou a olhar para ela, descansando do que seria um dia longo. Tinha o seu corpo endurecido pelo trabalho, talhado para as suas tarefas rotineiras, embora ainda fosse nova, ainda tivesse vinte e sete anos, já tinha uma velhice causada pelo trabalho, pelo vento carregado de sal, pelos filhos, que embora amasse, tinham vindo cedo na sua vida, quando ainda por dentro se sentia uma menina, mas isso eram preocupações supérfluas. Era uma Mulher. Apesar do trabalho ainda mantinha os seus traços de beleza insular que a caracterizavam desde sempre.

 

Levantou-se deixando a bebé no berço, e certificando-se que todos os filhos dormir, pegou num cesto de vime com roupa suja e saiu de casa, andando apenas uns poucos metros na direcção do quintal, na direcção da ribeira, e aí encontrou as suas vizinhas.

 

"Ora bons dias, Lucinda e Guadalupe.  Como estão os pequenos?"


Maria referia-se aos filhos que as suas vizinhas tinham e que ainda eram relativamente pequenos, como os seus! Lucinda, uma mulher bonacheirona, com rosto redondo, cabelos castanhos, e mãos rechonchudas era uma mãe modelo, e mesmo o parecia, era de uma calma inusitada, mas quando se tratava dos seus rebentos, podia transformar-se radicalmente.

Já Guadalupe tinha sempre um feitio mais explosivo, era muito energética e prática, mas também muito orgulhosa do que fazia como parteira, dos seus haveres, dos seus filhos e do seu corpo, embora todas elas fossem bonitas à sua maneira, a beleza de Guadalupe era uma beleza vistosa que atraía os homens famintos, que os cegava de luxúria, e esse aspecto já havia sido seio de muitas desavenças na freguesia no passado.

À laia de resposta à pergunta feita pela vizinha ambas as mulheres acenaram com a cabeça, entre uma escovadela e passar a roupa por água.


Quando é o baptizado da tua pequena?” perguntou a mais velha, Guadalupe.


Ainda bem que me falas nisso, vai ser no Domingo, daqui a três dias. Queria convidar ambas a aparecerem na missa. Deram-me uma grande ajuda, a missa não seria o mesmo sem vocês!


Descansa que vamos aparecer Maria. É na hora do costume?

Maria anuiu com a cabeça.


Era costume baptizar as crianças poucos dias depois de estas nascerem, Maria não queria que a sua pequenina não fosse consagrada aos olhos de Deus como sua filha, aliás, era também uma precaução contra as tentações futuras e os poderes malignos. Fazia dezassete dias no dia do seu baptismo a pequena Luzia, era mais do que tempo de se consagrar. Já tinha o vestido de linho branco preparado para o dia especial, e ideias acerca do que seria o almoço nesse dia de festa começavam a aparecer na cabeça de Maria. Seria necessário levantar-se mais cedo do que o costume, tirar alguma carne da salgadeira, matar uma galinha velha, fazer umas sopas de carne, e por fim fazer papas, para agradar aos seus outros petizes. Iria pedir também que a sua mãe e tias, e igualmente primas, se juntassem à família naquele dia.


Absorta nesses pensamentos, nem deu conta que já tinha acabado de lavar a roupa toda, e era necessária pendurá-la. Tal como ela, as vizinhas já tinham terminado a sua tarefa, e cada uma iria dirigir-se a sua casa para continuar as tarefas domésticas. Despediram-se alegremente e partiram.


Com o cesto de lado, Maria continuou o caminho naquele pequeno carreiro de terra batida que a levava a casa, ao quintal onde tinha uma pequena corda, onde estendia a roupa. Acto contínuo, ao executar tal tarefa, e enquanto a fragrância do sabão azul se propagava no ar, reparou que as roupas começavam a balançar num ritmo cada vez mais veloz, não tardaria que levantassem voo e fossem parara um lugar longínquo, ultrapassassem a barreira insular e se transportassem para um Mundo Novo, um Mundo de novidade e de mistério. Recolheu a roupa sem mais delongas e colocou-a novamente no cesto, para poder estendê-la numa altura mais propícia. Preocupada, regressou a casa, e encontrou o filho mais velho acordado, com os seus olhos grandes, que o caracterizavam, a olhar alheado pela janela, observando as faias na sua dança frenética movidas pela melodia do vento.


Anda Manuel, vem comer.” Disse a sua mãe, tentando ignorar os presságios.


O rapaz obedeceu, como era seu costume, e a ele seguiram-se os seus irmãos naquele ritual matinal de sequência, acordava um, e os outros acordavam com o barulho, começava a comer e os outros seguiam-se. A mãe via-se numa espiral de actividades, acode aqui, corre ali, serve a comida ao mais novo, manda o mais velho ajudar os mais pequenos, de modo a que todos estivessem prontos na altura devida. Por momentos Maria gostava de ver, embevecida, os seus filhos naquela altura da manhã, quando acordavam de um sono inocente, e ainda não havia brigas e disputas entre eles, como acontece como todos os irmãos, quando ainda não havia problemas domésticos para resolver, e tudo se reduzia a uma questão de azáfama para alimentar todos.


Como ainda era bastante cedo, e visto que Hildeberto ainda estava nos cerrados, mandou as crianças brincarem, perto de casa, é certo, mas permitiu dar-lhes aquele tempo de descontracção antes dos mais velhos executarem pequenas tarefas que lhes eram incumbidas pelo pai, para os rapazes, e pela mãe, pelas raparigas.

Foi com alegria que os pequenos ouviram tal permissão e com igual satisfação correram de casa a correr descalços para darem largas à sua imaginação, descobrindo cantos perdidos nos terrenos circundantes da sua casa, e mesmo terrenos mais afastados, sem a mãe saber, obviamente.


Maria permitiu-se também um tempo de descanso daquelas lidas matinais. Pegou na cadeira de madeira tosca que havia no seu quarto de casa, que havia sido feito pelo seu pai para o seu casamento, bem como o resto da mobília da casa, e que ainda conservava, e esperava conservar enquanto vivesse, conservando igualmente a memória do pai que já havia morrido, que Deus lhe dê descanso. O pai que sempre a ensinara a fazer as tarefas que lhe eram confiadas com a maior perfeição e orgulho, mesmo que lhe fosse custoso fazê-lo, um homem de uma ética surpreendente, contudo de uma teimosia inabalável, inquebrável e que lhe provocou alguns atritos com a filha, mas que acabaram por acabar com a cedência da filha. Ajudou-a a ser tolerante e perseverante. Muito devia ao seu pai.


Também hás-de aprender muito com o teu pai, Luzinha.” Murmurava Maria, enquanto se balançava na cadeira de recordações.

 

Ficou algum tempo observando-a e falando com a pequena baixinho para que não a acordasse, falando-lhe no avô que não conheceria, pelo menos fisicamente, pois Maria da Conceição queria ter a certeza que a sua neta conhecesse o génio do avô, pelas suas memórias, pelos seus feitos que tinham deixado uma marca indelével na família.

 

Acordou sobressaltada com os seus filhos a correrem pela casa adentro, dizendo que tinham fome, e que estava chovendo na rua.

Constatou que assim era, olhando pela janela, não conseguia observar mais do que grossas cordas de água que vinham furiosamente castigar o chão, deixando tudo em lameiro, provocando a ribeira, que se exaltava e que ameaçava saltar do seu lugar.

Já passava da hora do almoço, havia há muito, pois os seus filhos nunca teriam vindo para casa à hora do almoço para comer, era um costume já ter que gritar várias vezes com eles para deixarem a brincadeira e vir comer. Recriminou-se por ter adormecido estupidamente, e ter baixado a guarda nas suas funções! Lembrou-se do marido, e virou-se para Manuel:


Onde está o teu pai? Já voltou a casa?” o tom de preocupação na voz traía a sua aparente calma.


A resposta dada por aqueles grandes olhos esverdeados foi negativa.

 


Um Sopro de vento...#1 e 2


Ps. Não esqueci que o blog fez dois anos! Parabéns a quem ainda me acompanha.

música: Where the Streets Have no Name -U2
sinto-me: stressed out

11
Mai 08
publicado por Andi, às 15:10link do post | comentar | ver comentários (2)

1 de Novembro de 1901

 

 

Estava ajoelhado no banco de madeira dura e gasta da igreja havia já cinco minutos.  As mãos postas, os olhos fechados, a cabeça baixa, tudo levaria a crer que aquele pequeno rapaz estaria profundamente embrenhado no sofrimento de Jesus, que representava o sangue e a carne, o vinho e o pão. Contudo, ele estava com os olhos fechados, mas nada via, em nada pensava, apenas conseguia sentir os joelhos descobertos, devido aos calções curtos que usava, surrando na madeira que tinha algumas falhas e que o magoavam.

 

 

Finalmente o padre ordenou que se levantassem.

 

A missa prosseguiu e o Chiquinho, como lhe chamavam, estava já afogueado na roupa apertada, que tinha pertencido a um dos seus cinco irmãos, que já tinha morrido, de uma febre muito alta. Nunca o chegou a conhecer, era o mais novo de sete filhos, seis rapazes e apenas uma rapariga. Os seus pais, já de alguma idade, não haviam contado com a vinda dele, mesmo logo após a morte do seu irmão, a mãe apercebeu-se que estava grávida, mas nada lhe tirava o travo amargo que a perda daquele filho lhe causava, mesmo vindo outro a caminho, assim, foi com alguma indiferença que ela teve Chiquinho.

 

Apesar de tudo, Chiquinho era um rapaz contente e espevitado que passava os dias nos cerrados verdejantes a apanhar bichos e a rolar na erva, a apanhar erva azeda, ou mesmo atrás das cabras fartas do pai, que mal podiam correr, pelo excesso de peso, e pelo facto de terem as patas da frente atadas às de trás, o que lhes prendiam os movimentos. Chiquinho achava isto mal, mas não conseguia exprimir por palavras porquê, simplesmente quando se imaginava como sendo a cabra sentia-se preso e isso provocava-lhe uma sensação de mal-estar.

 

"... e o Senhor vos acompanhe."

"Graças a Deus."

 

Finalmente a missa terminou. Saiu da igreja robusta e forte, como uma anciã centenária com cabelos grisalhos mas ainda com forças para cavar no quintal se o dinheiro escasseasse e as colheitas fossem más, às vezes conseguia personificar a igreja, e imaginava-a como essa anciã, que em nova fora mulher bonita e viçosa e que amamentou todos os seus filhos sem deixar escapar um lamurio que seja.

 

Já cá fora, o vento despenteava o cabelo que a sua irmã que tinha vinte anos, mais velha que ele dezasseis anos, havia tentado domesticar, digamos assim. Era frio, o vento, e húmido, e cercava as pessoas que se encolhiam e tentavam resguardar-se, apertando contra si mesmas a roupa domingueira.

 

Corria pelo caminho que ficava a norte da igreja, ajudado pelo vento a subir, fazia-lhe cócegas a aragem do vento nas pernas descobertas pelos calções. Mas alguém gritava por ele:

 

"Chiquinho!"

 

Virou-se para trás e pôde ver a irmã com o cabelo castanho encaracolado ao vento, o vestido pesado, grosso, cinzento até aos tornozelos, tapando-lhe o corpo gracioso e elegante, mas mesmo assim não lhe ofuscava a beleza dos seus olhos castanhos de chocolate, doces igualmente, tinha as mãos em concha para que ele a pudesse ouvir, sobrepondo a sua voz aos sussurros demasiado altos do vento.

 

"Ainda não vamos para casa! Vamos passar em casa do Senhor Fonseca, que teve mais um filho."

 

Voltou para o arraial, a correr, como sempre. E lá desceu o caminho do cruzeiro para ir a casa do Senhor Fonseca, dos mais abastados da freguesia. Bem, não se lhe pode chamar abastado, porque na realidade eram todos bastante pobres, mas o Senhor Fonseca possuía uma casa grande, comparando com as outras e tinha algum gado.Já lá havia estado a brincar com o Manuel, um dos filhos dele, que era um pouco mais velho que ele, tinha sete anos. 

 

A casa encontrava-se repleta de pessoas que haviam saído da missa e que eram familiares, amigos ou conhecidos dos Fonseca. Encontrou pessoas que conhecia como Vanessa, a prima mais nova da Sra. Maria da Conceição, as duas parteiras Lucinda e Guadalupe, que já se haviam limpo e que estavam ali prontas a ajudar no que fosse necessário.

 

A irmã encaminhou-o para o quarto principal, onde estava Maria da Conceição, e a seu lado estava um berço tosco feito de madeira. Aproximou-se devagar do berço, e quando lhe incitaram a olhar, e ele assim o fez, apenas viu um bébé minúsculo, careca e com os olhos inchados, aliás nem se viam olhos nenhuns, não sabia se havia olhos por detrás daquelas protuberâncias. Os dedos eram igualmente pequenos. Nunca vira um bébé assim, tão perto e tão pequeno, achou-o feio, e aborrecido, não havia nada de especial ali. Todos se encontravam a olhar para ele babados enquanto ele segurava a mãozinha frágil do bébé, nem percebia se era rapaz ou rapariga. E perguntou-se a si mesmo, é só isto? Realmente não percebeu a razão de toda aquela excitação. Viu o Manuel a passar e correu atrás dele para ir brincar para o quintal.

música: Come as you are - Corvos
sinto-me: anti-social

26
Mar 08
publicado por Andi, às 18:40link do post | comentar | ver comentários (4)

1 de Novembro de 1901

O vento soprava, como sempre soprava, naquela aldeia, agreste e selvagem, como se quisesse arrancar todas as casas e plantas, e levar as pessoas consigo, levar tudo à sua passagem. O vento insular era sempre assim, diziam os mais velhos, igualmente os considerados mais sábios. Mas ganhava força pela proximidade do mar e da montanha, que encurralavam a freguesia da Agualva, como um cerco, embora a aldeia não se deixasse sucumbir, e espalhava-se de uma forma irregular, com os seus braços de polvo, pelos terrenos adjacentes.

O seu uivo ouvia-se passar entre as casas, nos quintais, palheiros, cerrados, fazendo notar a sua presença. Mas nesse dia não se ouvia só o vento. Ouvia-se também a voz de Maria da Conceição, estridente e aguda, liberta numa tentativa vã de libertar-se da dor, e também para conseguir fazer mais força. Naquelas alturas, maldizia o marido, que a tinha arrastado para aquela vida de sofrimento e trabalho árduo, zangava-se com as duas parteiras, que já lhe haviam ajudado no nascimentos dos dois primeiros rapazes, blasfemava , para no minuto seguinte prometer que haveria de ir e vir à Serreta a pé, por altura das festividades, como já antes fizera. Mas assim que a dor passava, esquecia as dores quase insuportáveis, e tudo voltava ao normal.

Já há cinco horas que Maria se encontrava deitada na sua cama, com as pernas arqueadas, e as mãos agarradas à beira da cama, tentando dar à luz ao seu filho, ou filha, ainda não sabia. As duas parteiras, Lucinda e Guadalupe andavam de um lado para o outro, atarantadas, dando ordens às vizinhas, primas, cunhadas e amigas que ali se encontravam naquele momento de grande aflição para todos.

"Vai tratar dos pequenos, que estão lá fora."

Disse Guadalupe à prima mais nova de Maria, que deveria ter uns dez anos, e que mal saberia cuidar de si, mas que deveria aprender já a tratar das crianças, porque, embora o seu corpo fosse trigueiro e baixo, depressa cresceria e teria filhos, tal como Guadalupe, que teve o primeiro de oito aos catorze anos.

"Vai buscar toalhas."

"Vai chamar o Manuel, que deve estar nas terras, vê se ele pode cá vir."

"Prepara água."....

Eram algumas das ordens dadas pelas parteiras, que se encarregavam da situação. Maria estava a achar aquele parto demasiado demorado, e era-o,em comparação com os outros. Começava a ficar exausta, nem tinha comido nada durante o dia inteiro, e já eram quatro horas da tarde, embora se tivesse levantado com o sol, às sete da manhã. Sentia-se a sugar pela cama adentro, como se a terra a chamasse, como se a quisesse junto dela, debaixo dela, começava a ver tudo enevoado, estava prestes a desfalecer, e ainda só aparecia um pouco da cabeça...

 

Era uma mulher, caramba! As mulheres são fortes, são resistentes, são... Não sabia definir, mas sabia que não se podia vencer por aquela criança que teimava ficar dentro de si, não se podia deixar vencer pela terra, que chamava por ela. Afinal, tinha tido o seu primeiro filho com dezoito anos, e desde cedo estava habituada ao trabalho duro no campo, e era uma mulher do campo, robusta e delicada ao mesmo tempo, iria conseguir dar à luz àquele filho, aquele pequeno rebento que antevia ser teimoso como tudo!

 

 

Um grito profundo e rouco,  vindo das entranhas de si mesma,  ecoou pelas paredes brancas da casa, e foi fazendo eco, pelo caminho fora, anunciando a notícia, não que já  não se soubesse que a Maria do Hildeberto Fonseca, ou sou Fonseca, "estava parindo um filho".

 

As parteiras gritavam também, agarradas entre si, num esforço final, em uníssono , clamando por aquela nova vida, e não pelo fim de duas.

 

Durante este instante, e num derradeiro esforço épico de Maria da Conceição, o bebé gorducho e quase roxo saiu num misto de sangue e tecidos, seguido por mais sangue, sangue e sangue. As parteiras pegaram no bebé e verificaram que era uma menina, e disseram-no a Maria da Conceição, mas esta não ouviu pois tinha perdido os sentidos pela grande perda de sangue, que escorria pelos lençóis e toalhas imaculadamente lavados na ribeira, a sabão azul, com o aprumo que Maria se gabava de ter. E ali estavam eles, ensopados de sangue, até que Maria, os fosse lavar de novo...

 

Lavaram a bebé  colocaram-lhe uma fralda de pano, e vestiram-na com um fato branco, dizem que dá sorte vestir um fato branco no primeiro dia, os seus irmãos haviam vestido o mesmo. E após Maria ter recuperado, deram-lhe a filha, a sua filha. E enquanto Maria olhava ternamente para a filha, que mal abria os olhos, mas que podia ver que eram verdes, como o mar em dia de amuo e de teimosia.

 

"Que nome lhe vais dar Maria?"

 

Perguntou Guadalupe.

"Eu e o Hildeberto pensamos em Luzia, como somos devotos de Santa Luzia."

"Bonito nome, vai ser uma menina linda,  e vai-te ajudar muito nas lidas da casa!"

Exclamou Lucinda, babada para a bebé que tinha ajudado a nascer, orgulhava-se do que fazia, como se fosse uma espécie de deusa que desse a vida aos bebé s que fazia nascer.

Nesse momento, o sino pesado da igreja, tocou as cinco horas, e também anunciou que a missa de celebração do Dia de Todos os Santos tinha terminado. Provavelmente, a maior parte da freguesia iria até à humilde casa de Maria e Hildeberto ver a sua filha, prezados com a roupa da missa, que só usavam ao Domingo e  dias de festa, andando em bicos de pé no chão de terra batida, para não sujarem os sapatos, os únicos que tinham e que usavam tão frequentemente como aquela roupa.

 

E assim foi, o resto da família, vizinhos e conhecidos veio ver a pequena Luzia, que acabava de passar por uma viagem vertiginosa e teimava em fechar os olhos, mesmo durante os próximos dias, negando estar ali, querendo provavelmente voltar atrás, como muitas vezes faria posteriormente.

Enquanto todos olhavam a pequena de olhos verdes, que não se conseguiam ver, o vento continuava a assobiar por entre as canadas e ruas da aldeia, fustigando tudo à sua passagem.

música: A message - Coldplay
sinto-me: ...

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