1 de Novembro de 1901
Estava ajoelhado no banco de madeira dura e gasta da igreja havia já cinco minutos. As mãos postas, os olhos fechados, a cabeça baixa, tudo levaria a crer que aquele pequeno rapaz estaria profundamente embrenhado no sofrimento de Jesus, que representava o sangue e a carne, o vinho e o pão. Contudo, ele estava com os olhos fechados, mas nada via, em nada pensava, apenas conseguia sentir os joelhos descobertos, devido aos calções curtos que usava, surrando na madeira que tinha algumas falhas e que o magoavam.
Finalmente o padre ordenou que se levantassem.
A missa prosseguiu e o Chiquinho, como lhe chamavam, estava já afogueado na roupa apertada, que tinha pertencido a um dos seus cinco irmãos, que já tinha morrido, de uma febre muito alta. Nunca o chegou a conhecer, era o mais novo de sete filhos, seis rapazes e apenas uma rapariga. Os seus pais, já de alguma idade, não haviam contado com a vinda dele, mesmo logo após a morte do seu irmão, a mãe apercebeu-se que estava grávida, mas nada lhe tirava o travo amargo que a perda daquele filho lhe causava, mesmo vindo outro a caminho, assim, foi com alguma indiferença que ela teve Chiquinho.
Apesar de tudo, Chiquinho era um rapaz contente e espevitado que passava os dias nos cerrados verdejantes a apanhar bichos e a rolar na erva, a apanhar erva azeda, ou mesmo atrás das cabras fartas do pai, que mal podiam correr, pelo excesso de peso, e pelo facto de terem as patas da frente atadas às de trás, o que lhes prendiam os movimentos. Chiquinho achava isto mal, mas não conseguia exprimir por palavras porquê, simplesmente quando se imaginava como sendo a cabra sentia-se preso e isso provocava-lhe uma sensação de mal-estar.
"... e o Senhor vos acompanhe."
"Graças a Deus."
Finalmente a missa terminou. Saiu da igreja robusta e forte, como uma anciã centenária com cabelos grisalhos mas ainda com forças para cavar no quintal se o dinheiro escasseasse e as colheitas fossem más, às vezes conseguia personificar a igreja, e imaginava-a como essa anciã, que em nova fora mulher bonita e viçosa e que amamentou todos os seus filhos sem deixar escapar um lamurio que seja.
Já cá fora, o vento despenteava o cabelo que a sua irmã que tinha vinte anos, mais velha que ele dezasseis anos, havia tentado domesticar, digamos assim. Era frio, o vento, e húmido, e cercava as pessoas que se encolhiam e tentavam resguardar-se, apertando contra si mesmas a roupa domingueira.
Corria pelo caminho que ficava a norte da igreja, ajudado pelo vento a subir, fazia-lhe cócegas a aragem do vento nas pernas descobertas pelos calções. Mas alguém gritava por ele:
"Chiquinho!"
Virou-se para trás e pôde ver a irmã com o cabelo castanho encaracolado ao vento, o vestido pesado, grosso, cinzento até aos tornozelos, tapando-lhe o corpo gracioso e elegante, mas mesmo assim não lhe ofuscava a beleza dos seus olhos castanhos de chocolate, doces igualmente, tinha as mãos em concha para que ele a pudesse ouvir, sobrepondo a sua voz aos sussurros demasiado altos do vento.
"Ainda não vamos para casa! Vamos passar em casa do Senhor Fonseca, que teve mais um filho."
Voltou para o arraial, a correr, como sempre. E lá desceu o caminho do cruzeiro para ir a casa do Senhor Fonseca, dos mais abastados da freguesia. Bem, não se lhe pode chamar abastado, porque na realidade eram todos bastante pobres, mas o Senhor Fonseca possuía uma casa grande, comparando com as outras e tinha algum gado.Já lá havia estado a brincar com o Manuel, um dos filhos dele, que era um pouco mais velho que ele, tinha sete anos.
A casa encontrava-se repleta de pessoas que haviam saído da missa e que eram familiares, amigos ou conhecidos dos Fonseca. Encontrou pessoas que conhecia como Vanessa, a prima mais nova da Sra. Maria da Conceição, as duas parteiras Lucinda e Guadalupe, que já se haviam limpo e que estavam ali prontas a ajudar no que fosse necessário.
A irmã encaminhou-o para o quarto principal, onde estava Maria da Conceição, e a seu lado estava um berço tosco feito de madeira. Aproximou-se devagar do berço, e quando lhe incitaram a olhar, e ele assim o fez, apenas viu um bébé minúsculo, careca e com os olhos inchados, aliás nem se viam olhos nenhuns, não sabia se havia olhos por detrás daquelas protuberâncias. Os dedos eram igualmente pequenos. Nunca vira um bébé assim, tão perto e tão pequeno, achou-o feio, e aborrecido, não havia nada de especial ali. Todos se encontravam a olhar para ele babados enquanto ele segurava a mãozinha frágil do bébé, nem percebia se era rapaz ou rapariga. E perguntou-se a si mesmo, é só isto? Realmente não percebeu a razão de toda aquela excitação. Viu o Manuel a passar e correu atrás dele para ir brincar para o quintal.